sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
AVENTURAS, DESVENTURAS, SONHOS E PESADELOS
Brasil, ame-o ou deixe-o. Para quem entrara na universidade no início da década de 70, auge da ditadura militar, e não se conformava com a situação do país, o lema da propaganda oficial era uma ordem: deixe-o. E foi uma debandada. Quase todos optavam pela Europa. Juntavam uns trocados, a família ajudava ("pintava uma grana", diziam, para não parecer caretice) e se mandavam.
No final de 1971, me juntei a mais quatro colegas do curso de jornalismo da Ufrgs (dois rapazes e duas gurias), um estudante de medicina e uma de Letras para fazer um roteiro diferente: deixar o Brasil por terra e percorrer a América Latina, sem destino definido nem prazo para voltar. Como não tinha pintado grana para nenhum de nós (eu havia conseguido economizar cem dólares) nossa ideia era cantar música brasileira nos lugares onde estivéssemos para sobreviver e seguir em frente.
A viagem começou por Uruguaiana, para onde fomos de trem. De lá subimos de carona para Corrientes, no nordeste argentino, e atravessamos de trem o deserto do Chaco até Salta, já na pré-cordilheira dos Andes, perto da fronteira com a Bolívia, onde passamos 20 dias.
Lá nos juntamos a quatro rapazes, três cariocas e um gaúcho. Eles viajavam num motor home, o Grilo Boca de Ouro, e haviam saído do Rio. Passaram por Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires e pretendiam chegar ao Canadá. Mas haviam gastado todo o dinheiro que tinham e não sabiam o que fazer para continuar - ou voltar.
Quando viram o nosso "show" numa praça, ficaram deslumbrados com o as notas e moedas que ganhamos e nos convidaram para seguirmos juntos. Para nós era ótimo ter onde dormir e preparar refeições, depois de passar noites ao relento. Nosso dinheiro também havia acabado, e o que nos davam nas praças não era suficiente para pagar hotéis. Amontoados nos quatro beliches, nos balcões e no chão de um Chevrolet 55, viajamos juntos até La Paz, onde nos separamos, depois de dois meses de deslumbramento, namoros, brigas e descobertas, entre elas a cocaína e o ácido lisérgico.
Quase todo o grupo que havia saído de Porto Alegre decidiu ficar na capital boliviana por mais algum tempo e eu segui no ônibus. Com medo de sermos presos, partimos de madrugada. A polícia já vigiava o entra-e-sai de jovens malucos, traficantes e todo o tipo de curiosos que passaram a frequentar a praça onde estávamos estacionados.
Contornamos o lago Titicaca e entramos no Peru por Copacabana, cidade boliviana homônima do bairro carioca. Saímos de um país onde recém ocorrera um golpe militar de direita para conhecer a experiência de regime populista de esquerda, também liderada por um general. Éramos então apenas quatro, e a harmonia voltou ao ônibus/lar. Passamos alguns dias em Arequipa e descemos até uma praia do Pacífico onde ganhamos um bom dinheiro fazendo brincos e pingentes artesanais para vender aos veranistas.
A viagem até Lima foi interrompida algumas vezes por problemas mecânicos causados pelo calor de até 40 graus do deserto e de um terremoto que engoliu parte da estrada que costeia o oceano Pacífico. Ficamos imobilizados por vários dias na cidade de Nazca para consertar o motor e esperar a reabertura da estrada interrompida. Se tivéssemos lido o livro Eram Deuses os Astronautas, do alemão Erich von Dänicken, não teríamos desperdiçado a oportunidade de conhecer a pista onde os supostos seres extra-terrestres teriam aterrissado, a poucos quilômetros dali.
Para pagar o conserto do motor tivemos que vender os botijões de gás e os últimos equipamentos fotográficos que nos restavam. Desanimado com tantos percalços, o dono do ônibus decidiu voltar de Lima para sua amada Copacabana, no Rio. Os outros também voltaram para o Brasil.
Continuei com dois gaúchos que havia conhecido dias antes. Eles queriam ir para os Estados Unidos, e apesar de terem sido roubados no Chile e estarem duros como eu, nem pensavam em desistir.
A partida de Lima, poucos dias depois da despedida dos companheiros, também foi furtiva. Estávamos hospedados na casa de um "amigo" limenho, que pretendia produzir um curta-metragem conosco. Ele era meio maluco, e fugimos de madrugada com a filmadora dele, pensando em vendê-la mais tarde.
Meus novos amigos, um fotógrafo e um poeta, se revelaram excelentes companheiros de viagem. De carona em carona, sempre rumo ao Norte, chegamos a Quito, capital do Equador. Eu cantava em praças, bares e restaurantes, e ganhava o suficiente para comermos pratos feitos e nos hospedarmos em hotéis da mais baixa categoria possível. Otavalo, uma pequena cidade conhecida por seu artesanato típico a duas horas de viagem ao norte de Quito, seria apenas uma parada de um ou dois dias, e o Equador um país de passagem para a Colômbia e a América Central caso não tivéssemos conhecido, depois de uma apresentação no mercado local, um norteamericano extremamente simpático chamado Redwood. Fã de Bossa Nova, ele nos convidou a conhecer a casa onde morava com outros dois americanos e um colombiano. A integração foi imediata, e acabamos morando lá por cinco meses, com breves ausências para renovar o visto (e comprar maconha) na Colômbia, além de circuladas por outras cidades equatorianas.
Neste blog estão as histórias dessas as aventuras, desventuras, sonhos e desilusões de oito meses de viagens, com fotos do meu arquivo e pesquisadas na internet.
LOS MACUNAÍMA em Oruro, Bolívia, em fevereiro de 1972
Em cima da rampa, da esquerda para a direita: Paulinho, Régis, Clóvis Heberle, Maria Orminda, Sérgio Ferreira de Mattos (falecido), Nara Molina d'Ávila e Liana Milanez
Embaixo: Pedro Jacobsen, Artur Borba (falecido), Gastão Lamounier e Lourival Gonçalves (Dodo).
ZAMBAS, BAGUALAS, CHACARERAS
A idéia de montar um espetáculo de música brasileira para poder viajar sem dinheiro surgiu numa das tantas festas da tuma da faculdade. Se varávamos as noites cantando e o pessoal gostava, por que não cobrar e sair por aí? Passamos um mês ensaiando e quando embarcamos a banda estava afinada. Cantávamos acompanhados de dois violões, um atabaque, um pandeiro e uma flauta doce.
Artur escreveu um texto de apresentação em espanhol de Los Macunaíma e do projeto de cantar música brasileira continente afora. Terminava com uma saudação “a esta puta maravillosa que es latinoamerica” - e a idéia era conquistar aí os primeiros aplausos. Discutimos o repertório do show até a exaustão. Começava com o Funeral do Lavrador, de Chico Buarque.
Nosso último ensaio foi a bordo de um vagão de terceira (e última) classe do trem Porto Alegre-Uruguaiana, que saía no final da tarde e chegava na fronteira com a Argentina no dia seguinte, de manhã. Como era impossível dormir nos bancos de madeira, acabamos cantando a noite inteira, cedendo, eventualmente, uma “canja” a algum passageiro, pois, como nós, ninguém dormia. O mais inspirado deles levou o vagão ao delírio com Butterfly, sucesso da época. Embalados pelo vinho de garrafão que corria de boca em boca, todos acompanhavam o refrão: “baterfrai, mai baterfraaaaai...”
Los Macunaíma estrearam em Paso de Los Libres, e já nas primeiras apresentações nos demos conta de que aquele texto da puta latinoamericana não servia por ser melodramático demais. O funeral do lavrador também foi abandonado - era muito triste para abrir um show. Os hermanos queriam era músicas de carnaval, sambas, garotas rebolando. Passamos a atacar de “Mamãe eu Quero”...
No dia seguinte seguimos para o norte até Corrientes, na margem do rio Paraná. Atravessamos de barca até Resistência e lá ficamos sabendo que a localidade mais próxima em direção ao noroeste argentino - nosso destino era Salta - era Pampa del Infierno, em pleno deserto do Chaco. Naquela época não havia estradas asfaltadas, e tivemos que pegar um trem. Última classe, claro.
Era noite de Natal, e os poucos passageiros começaram a tirar petiscos e vinho das suas bagagens de mão. Não demorou muito a estarmos todos bêbados. Inclusive o cobrador, que cambaleando balbuciava: "los boletos, por favor" Los boleeeetos".
Pampa del Infierno merecia o nome. Parecia aqueles lugarejos do velho oeste americano, com casas de madeira castigadas pelo sol, calor insuportável e ruas poeirentas.
Mas conseguimos fazer uma refeição no único "comedor" local, e lá conseguimos uma carona até Metán, na pré-cordilheira e depois até Salta, no norte argentino..
Nossa temporada de Salta representou o início de nossa carreira e também o primeiro contato com a música folclórica argentina. Nos hospedamos por vários dias na casa de Manuel Castilla, um dos mais importantes poetas e compositores argentinos. Um filho dele era nosso conhecido, pois havia passado vários dias na casa do Serginho, em Porto Alegre, e retribuímos a visita. A casa de Castilla estava sempre cheia de visitantes – cantores, compositores, instrumentistas, fãs, quase todos apresentados como “músico, abogado y grande amigo mio”. Durante o dia, nos apresentávamos em praças, restaurantes e até colégios, e à noite mergulhávamos nas zambas, chacareras, bagualas e carnavalitos.
Era final de ano, e os salteños tinham o costume de irem em grupos de casa em casa para cantar, recitar poesias e beber vinho, madrugada adentro. Fiquei encantado pelo som seco do bombo legüero, a marcar o ritmo,e com a riqueza melódica e poética das músicas. Deslumbrado, eu não desgrudava do velho Castilla. Lá pelas tantas da madrugada, já em casa, a esposa dele aparecia na sala para exigir que ele fosse dormir – e nós também, claro. Numa dessas, contrariado, ele me segredou: “Clovis, nunca te cases. Ainda mais com uma mulher...”
Pergunta difícil de responder...
"Y DIGAME, HERMANITO: COMO ES EL MAR?????"
(de um argentino de Salta que, "por supuesto", nunca havia visto o mar)
ENTRAMOS NUMA FRIA...
Os cariocas trouxeram muita maconha, da boa, ao deixarem o Posto Seis de Copacabana com destino ao Canadá. Era para durar até a Colômbia, mas a carne é fraca. Em Salta, norte da Argentina, o estoque já estava na última trouxinha. Mas eles não estavam chateados com isso. Ouviram falar que ali havia cocaína da boa. Afinal, a Bolívia ficava logo ali. Ninguém de nós havia provado ainda o pozinho branco, raríssimo e caro no Brasil naquela época.
Foram atrás e voltaram faceiros da vida, com um hermano que propôs uma troca vantajosa para os dois lados: maconha brasileira por coca boliviana, da melhor. Eram vários papelotes, daria para todos. O cara se mandou e nós pedimos os espelhos das gurias para cheirar as carreirinhas. Depois das primeiras cheiradas, foi aquela gritaria. Puta que o pariu! O calhorda nos deu bicarbonato de sódio.
Foram atrás e voltaram faceiros da vida, com um hermano que propôs uma troca vantajosa para os dois lados: maconha brasileira por coca boliviana, da melhor. Eram vários papelotes, daria para todos. O cara se mandou e nós pedimos os espelhos das gurias para cheirar as carreirinhas. Depois das primeiras cheiradas, foi aquela gritaria. Puta que o pariu! O calhorda nos deu bicarbonato de sódio.
NA FRONTEIRA DA BOLÍVIA
Lígia Sávio e Milton Kurz saíram depois de nós e nos alcançaram em Salta para continuarmos juntos. Pouco tempo depois, Milton adoeceu e os dois tiveram que voltar para Porto Alegre.
Atravessar a fronteira de um país para outro tem sempre uma carga de tensão. Passar pelos controles aduaneiros com um motor home lotado de jovens cabeludos e barbudos exigia cuidados que iam além de ter os documentos em ordem. De Salta a San Salvador de Jujuy, na fronteira da Argentina com a Bolívia, passamos o tempo todo discutindo como faríamos para ganhar as boas graças dos funcionários bolivianos.
Em janeiro de 1972 a Bolívia ainda vivia o impacto do golpe militar do general Hugo Banzer, que, com apoio americano, claro, impôs ao país um regime ultradireitista. Decidimos conquistar o inimigo. Ao chegar a Jujuy, fizemos uma faxina caprichada no Grilo, concluída com um tubo inteiro de aromatizante para tirar qualquer cheiro suspeito do ar. Todos tomaram banho e fomos ao consulado boliviano, responsável pelas concessões de vistos de entrada. Pedimos para falar com o cônsul, e o convidamos para entrar no ônibus. Explicamos que éramos estudantes brasileiros em viagem de estudos pela América do Sul em nossas férias escolares, financiadas por nossos pais.
O cônsul era militar, e, depois de alguns minutos de conversa, confidenciou, orgulhoso, que pertenceu ao batalhão de "rangers" que prendeu e matou Che Guevara. Deve ter simpatizado conosco, pois, apesar de observar, divertido, que nas fotos dos passaportes tínhamos cabelos cortados, liberou nossa entrada na Bolívia sem pagamento de taxas.
VAMOS A LA PAZ, SEÑOR
Nosso velho Chevrolet 55 subia penosamente a cordilheira dos Andes. Eram subidas e descidas intermináveis, a 10, 20 quilômetros por hora. O ônibus mal cabia na estrada estreita, de pedra cavada nas montanhas. A velocidade era tão baixa que, em alguns trechos, alguns de nós preferiam ir a pé para apreciar melhor a paisagem.
De repente , numa aclive mais íngreme, o radiador começou a ferver, esguichar água, e o motor parou de funcionar. O problema era grave: a bomba de gasolina estava vazando, e os pingos caíam junto da velas, com risco de incêndio e explosão.
Em poucos minutos chegou um ônibus de passageiros que vinha estrada acima e um caminhão em sentido contrário. Como não havia como ultrapassar, ambos tiveram que parar, e nos vimos rodeados de bolivianos, mais divertidos que preocupados com o incidente. O centro do interesse de todos era o motor. Formaram-se grupinhos que trocavam idéias sobre a melhor forma de resolver o problema.
Depois de várias tentativas, o vazamento de gasolina foi estancado com sabão e barbante. Um passageiro do ônibus, que observava atentamente a operação, me perguntou para onde estávamos indo.
- A La Paz - respondi.
Ele olhou aquele conserto improvisado, riu baixinho e disse:
- Pero con este coche ustedes irán a la paz... del señor...
De repente , numa aclive mais íngreme, o radiador começou a ferver, esguichar água, e o motor parou de funcionar. O problema era grave: a bomba de gasolina estava vazando, e os pingos caíam junto da velas, com risco de incêndio e explosão.
Em poucos minutos chegou um ônibus de passageiros que vinha estrada acima e um caminhão em sentido contrário. Como não havia como ultrapassar, ambos tiveram que parar, e nos vimos rodeados de bolivianos, mais divertidos que preocupados com o incidente. O centro do interesse de todos era o motor. Formaram-se grupinhos que trocavam idéias sobre a melhor forma de resolver o problema.
Depois de várias tentativas, o vazamento de gasolina foi estancado com sabão e barbante. Um passageiro do ônibus, que observava atentamente a operação, me perguntou para onde estávamos indo.
- A La Paz - respondi.
Ele olhou aquele conserto improvisado, riu baixinho e disse:
- Pero con este coche ustedes irán a la paz... del señor...
GRILO BOCA DE OURO
Pintado de azul e creme, com a bandeira do Brasil e o destino Rio-Canadá na frente, ele atraía a atenção em todos os lugares onde chegava. Apelidado de Grilo Boca de Ouro por Régis, um carioca da rua Miguel Lemos, posto 6 de Copacabana, que o comprou já aposentado do transporte coletivo, o ônibus foi reformado para servir de casa rodante. Em vez de bancos, dois beliches, e na parte de trás três balcões em forma de U com apetrechos de cozinha, de artesanato e um laboratório fotográfico.
O defeito do Grilo era não ter banheiro – tínhamos que parar perto de postos de gasolina ou bares. Quando não havia outra opção – e isto era comum na Bolívia e no Peru, onde a resposta para "donde es el baño?" costumava ser "hay campo" – o jeito era fazer como os cholos e cholas (índios e índias): procurar um descampado e usar como banheiro. Com o tempo, isto se tornou tão natural que fazíamos uma roda para cagar juntos, batendo altos papos...
O lugar mais agradável para viajar quando não estava frio ou chovendo era num banco colocado em cima do teto. Dava para ver a paisagem num ângulo de 360 graus.
Numa noite de lua cheia, o Régis e a Liana decidiram viajar lá em cima. Tudo corria bem até que, depois de um solavanco forte (a estrada era de chão batido) ouvimos gritos e um baque. O Régis havia caído. Apesar da altura, não se machucou muito. O dodo improvisou uma bengala com um galho, e depois de alguns dias ele não sentiu mais nada.
Quando saiu do Rio, o ônibus, montado sobre a plataforma de um caminhão Chevrolet 1955, estava inteiro. Régis e seus amigos Gastão e Paulinho, da turma da rua Miguel Lemos, brigavam para dirigi-lo. Mas os milhares de quilômetros, a subida da cordilheira dos Andes e o deserto da costa peruana acabaram tornando inviável o projeto de chegar a Detroit para propor à General Motors a sua troca por um motor home novo para continuar até o Canadá e depois voltar ao Brasil. A parte mecânica e elétrica estavam constantemente em pane e não havia dinheiro para reformar o motor.
Impossibilitado de vender o veículo em Lima por causa das leis peruanas, Régis cogitou em incendiá-lo na praia, com ampla cobertura da imprensa local. Acabou optando pelo bom senso. Doou-o a um clube de caça e pesca. Talvez anda esteja prestando bons serviços aos pescadores e caçadores limenhos.
CHURRASQUINHO DE LLAMA NO ALTIPLANO
Long and winding road
No trecho entre o norte da Argentina e o sul da Bolívia, a rodovia Pan-Americana, que liga a Patagônia ao México, era uma estrada de chão, estreita e perigosa, cavada nas encostas das montanhas. A cada quilômetro havia espaço para permitir a ultrapassagem caso dois veículos se cruzassem. As pontes eram raras. Os riachos de leitos pedregosos tinham que ser atravessados na base da fé em Deus e pé na tábua, e às vezes era difícil reencontrar a estrada no outro lado.
Mas não tínhamos pressa, deslumbrados com o cenário de montanhas e vales, vilarejos indígenas bolivianos onde poucas pessoas falavam o espanhol, apenas o quechua (num deles tivemos dificuldade em conseguir gasolina, até que encontramos alguém que nos entendia).
Tudo era novidade. Parávamos para almoçar e descansar em lugares bonitos, junto a regatos, onde depois lavávamos os pratos e panelas. Nos pueblos éramos recebidos como celebridades, mas tivemos que desistir da idéia de ganhar algum dinheiro cantando ou praticando pequenos furtos em mercadinhos pois o povo era muito pobre.
A altitude das montanhas, medida em milhares e não em centenas de metros, subverteu minha noção de profundidade e de distância. Lá do alto era possível enxergar dezenas de quilômetros ao redor, montanha após montanha, em todos os tons do verde (as mais próximas) ao azul (as mais distantes).
Chegar ao altiplano boliviano, depois de tantas subidas e descidas, foi um alívio. Superamos problemas mecânicos com bom humor. Estávamos eufóricos, apreciando a nova paisagem a mais de três mil metros de altitude, quando surgiu uma manada de llamas. Régis gritou: vamos fazer um churrasco de llama!
Cansados da dieta à base de macarrão, apoiamos imediatamente a proposta. Pulamos a cerca baixa e saímos correndo, com cordas para tentar laçar uma delas. Talvez até conseguiríamos, mas... fomos vencidos pela falta de oxigênio. Em poucos minutos, um a um de nós parava, ofegante. Alguns sangravam pelo nariz. Tivemos que seguir viagem, enquanto as llamas continuavam pastando, placidamente.
No trecho entre o norte da Argentina e o sul da Bolívia, a rodovia Pan-Americana, que liga a Patagônia ao México, era uma estrada de chão, estreita e perigosa, cavada nas encostas das montanhas. A cada quilômetro havia espaço para permitir a ultrapassagem caso dois veículos se cruzassem. As pontes eram raras. Os riachos de leitos pedregosos tinham que ser atravessados na base da fé em Deus e pé na tábua, e às vezes era difícil reencontrar a estrada no outro lado.
Mas não tínhamos pressa, deslumbrados com o cenário de montanhas e vales, vilarejos indígenas bolivianos onde poucas pessoas falavam o espanhol, apenas o quechua (num deles tivemos dificuldade em conseguir gasolina, até que encontramos alguém que nos entendia).
Tudo era novidade. Parávamos para almoçar e descansar em lugares bonitos, junto a regatos, onde depois lavávamos os pratos e panelas. Nos pueblos éramos recebidos como celebridades, mas tivemos que desistir da idéia de ganhar algum dinheiro cantando ou praticando pequenos furtos em mercadinhos pois o povo era muito pobre.
A altitude das montanhas, medida em milhares e não em centenas de metros, subverteu minha noção de profundidade e de distância. Lá do alto era possível enxergar dezenas de quilômetros ao redor, montanha após montanha, em todos os tons do verde (as mais próximas) ao azul (as mais distantes).
Chegar ao altiplano boliviano, depois de tantas subidas e descidas, foi um alívio. Superamos problemas mecânicos com bom humor. Estávamos eufóricos, apreciando a nova paisagem a mais de três mil metros de altitude, quando surgiu uma manada de llamas. Régis gritou: vamos fazer um churrasco de llama!
Cansados da dieta à base de macarrão, apoiamos imediatamente a proposta. Pulamos a cerca baixa e saímos correndo, com cordas para tentar laçar uma delas. Talvez até conseguiríamos, mas... fomos vencidos pela falta de oxigênio. Em poucos minutos, um a um de nós parava, ofegante. Alguns sangravam pelo nariz. Tivemos que seguir viagem, enquanto as llamas continuavam pastando, placidamente.
LÁGRIMAS DE PRATA EM POTOSI
"En Potosi solo tenemos dos estaciones: el invierno y la estación del tren..."
É com esta frase, seguida de uma gargalhada, que os moradores da cidade costumam descrever o seu clima. Apesar de estar situada na mesma latitude de Belo Horizonte, em Potosi os termômetros raramente marcam mais de 20 graus, mesmo no auge do verão, por ser uma das mais altas cidades do mundo – fica 4 mil metros acima do nível do mar.
Ao chegar lá, eu já havia me acostumado com o ar rarefeito do altiplano. Meu choque foi outro: ver de perto um dos mais emblemáticos exemplos da rapina de um país cujas riquezas foram saqueadas enquanto quase toda a população, de absoluta maioria indígena, permaneceu, século após século, na extrema pobreza.
Fomos contratados para nos apresentar durante as tardes, nos intervalos entre uma e outra sessão do cinema local. O dono do cinema nos cedeu um quarto ao lado da sala de projeção para dormirmos. Enquanto os filmes rodavam, aproveitávamos para conhecer a cidade que, entre os séculos 16 e 18, contribuiu para sustentar o império colonial espanhol e a renascença européia. Calcula-se que, apenas do Cerro Rico, morro que se sobressai na paisagem da cidade, foram retiradas 56.000 toneladas de prata, suficientes para ligar Potosi a Madri. As mineradoras continuaram em atividade até 1985,quando as minas, exauridas, foram praticamente abandonadas, deixando a maioria dos seus 120 mil habitantes da cidade sem trabalho.
A primeira impressão que se tem do Cerro Rico é de um imenso queijo cheio de buracos, de cor avermelhada, pois nada cresce nas encostas. Visitar suas minas é um passeio obrigatório. Ver o que restou delas, e o contraste entre o quanto foi retirado e a miséria do entorno, dá vontade de chorar.
Apesar de seu aspecto desolador, o cerro ainda provoca cobiça: com as modernas técnicas de mineração, é economicamente viável extrair a prata remanescente nas suas rochas, moídas por máquinas de grande capacidade de produção. Ao fim do trabalho, nada mais restaria desse monumento ao colonialismo selvagem. Numa recente pesquisa de opinião promovida pelo governo sobre esta possibilidade, a população manifestou uma opinião unânime: prefere deixar o cerro como está, pois nada teria a ganhar com a sua exploração.
O centro histórico também tem corrido riscos. Seus prédios coloniais, quase todos em mau estado, ainda dão uma boa ideia do antigo esplendor do período colonial , quando era uma das cidades mais importantes e populosas do mundo. Considerada patrimônio histórico mundial pela Unesco, Potosi tem resistido às tentativas de governos e grupos econômicos interessados em demolir a área urbana para explorar o seu sub-solo, onde ainda há minerais valiosos.
Um dos poucos prédios preservados do Centro Histórico, o museu onde funcionava a Casa da Moeda, é outro símbolo do barbarismo espanhol. Era ali que a prata das minas era transformada em lingotes e moedas para abastecerem o império.
Os indígenas eram usados como tração animal para movimentar as máquinas. Empurravam alavancas andando em círculos, como os bois nas antigas moendas. Quando desfaleciam, eram retirados e substituídos. Sulcos circulares nas pedras onde pisavam ficaram como marcas de tantos anos de trabalho. Nas minas, as jornadas se estendiam do amanhecer até a noite. Sem ver a luz do sol, mal alimentados e respirando ar rarefeito e contaminado, morriam em poucos meses. Em 1638, o frei Antonio de la Calancha escreveu que cada moeda de um peso custava a vida de 10 índios.
Nas ruas de Potosi, conversando com os descendentes destes quíchuas, concluí que a vida deles não melhorou muito de lá para cá. Mascam folhas de coca o dia todo para "quitar el hambre", bebem álcool puro para aliviar o frio depois deixá-lo queimar um pouco baixar o teor alcoólico e vagam pelas montanhas, sós ou em grupos, em busca de algumas gramas de prata que tenham escapado de cinco séculos de pilhagem.
APOGEU E FIM DE LOS MACUNAÍMA
Oruro não teve o esplendor da vizinha Potosi, mas também não entrou em decadência quando os veios de prata se exauriram, pois na região havia muito estanho e outros minerais para manter a sua atividade econômica. Até até hoje é um importante pólo industrial e de mineração.
Os orurenhos são descendentes dos orurus, índios conhecidos já no século 16 pelo seu talento para a cerâmica. Nas últimas décadas, Oruro se tornou conhecida como a capital boliviana da música e a dança. As Peñas Folclóricas, restaurantes com palcos para apresentações de grupos musicais, são a maior atração da cidade, e o carnaval atrai visitantes de todo o país e cada vez mais estrangeiros.
Nós chegamos poucos dias antes do carnaval, e o Grilo logo se tornou atração na cidade. O dono de um posto de gasolina e oficina mecânica nos cedeu lugar para estacionar o ônibus, com direito a banheiro, água e uma sala onde montamos o laboratório fotográfico.
Uma banda de música brasileira era tudo o que os donos das Peñas queriam para dar um toque especial às noitadas animadas por quenas, charangos e bumbos, e fechamos contratos para nos apresentar em troca de refeições e uma pequena quantia em dinheiro (no primeiro dia, ao verem aquele bando de onze famintos comendo por 22, eles se arrependiam, mas aí já era tarde...).
Produzimos fotos promocionais em que o cenário era a rampa da própria oficina (coloquei no blog as únicas que trouxe comigo). Colávamos as fotos nas vitrines das lojas, e fazíamos propaganda dos shows rodando pela cidade, três ou quatro cantando e batucando na capota. À noite éramos a atração principal, anunciados como "Los Macunaíma, directamente de Brasil". O reforço dos cariocas Gastão no violão e Paulinho e Régis na percussão deu mais solidez e ritmo à banda, e os sambas e músicas de carnaval eram especialmente aplaudidos.
Maria Orminda, uma cearense de corpo fornido, parecido com os das índias quechuas, não cantava nem tocava instrumento algum, mas tinha um papel fundamental, especialmente quando o nosso desempenho não estava bom. Ela não se fazia de rogada quando eu pedia "rebola, Minda, rebola". Ninguém mais prestava atenção na música. Era um delírio.
Durante o dia, além de promover nossos shows, percorríamos as casas comerciais com um livro de ouro para pedir ajuda financeira. Nos apresentávamos como estudantes brasileiros em viagem de estudos que precisavam de apoio para conhecerem o país. Foi uma excelente idéia da Liana, que havia se tornado uma espécie de gerente da casa. Outra, também dela: visitávamos fábricas de alimentos e pedíamos doações. Conseguimos um bom estoque de leite (em pó, condensado), macarrão e outros produtos. Duraram semanas, e acabaram nos causando incômodas prisões de ventre.
Nossa temporada era um sucesso, tínhamos dinheiro e alimentação garantidos. Sem problemas, digamos, logísticos, poderíamos continuar viajando o tempo e para onde quiséssemos. Sempre haveria palcos, praças e pessoas dispostas a ajudar estes jovens estudantes, simpáticos e talentosos, numa fascinante viagem de estudos. Mas aí começaram nossos problemas com as drogas. Em vez de bicarbonato, provamos a puríssima cocaína boliviana. Depois o LSD, trazido por norteamericanos e europeus.
Era cada vez mais difícil reunir a turma para ensaiar e até mesmo para almoçar no horário marcado pelos donos dos restaurantes. Uns ou outros passavam a noite em claro, depois de cheirar algumas carreiras, e passavam a maior parte do dia dormindo. Quando acordavam, só pensavam em sair para " batalhar um pozinho". Começaram as brigas entre nós e entre os casais que havia se formado no grupo. O dinheiro, guardado em caixa único, sumia, sem que ninguém soubesse quem pegou e para que.
O carnaval havia passado, não tínhamos shows para fazer, a cidade já não oferecia novos atrativos. Era hora de partir.
Os orurenhos são descendentes dos orurus, índios conhecidos já no século 16 pelo seu talento para a cerâmica. Nas últimas décadas, Oruro se tornou conhecida como a capital boliviana da música e a dança. As Peñas Folclóricas, restaurantes com palcos para apresentações de grupos musicais, são a maior atração da cidade, e o carnaval atrai visitantes de todo o país e cada vez mais estrangeiros.
Nós chegamos poucos dias antes do carnaval, e o Grilo logo se tornou atração na cidade. O dono de um posto de gasolina e oficina mecânica nos cedeu lugar para estacionar o ônibus, com direito a banheiro, água e uma sala onde montamos o laboratório fotográfico.
Uma banda de música brasileira era tudo o que os donos das Peñas queriam para dar um toque especial às noitadas animadas por quenas, charangos e bumbos, e fechamos contratos para nos apresentar em troca de refeições e uma pequena quantia em dinheiro (no primeiro dia, ao verem aquele bando de onze famintos comendo por 22, eles se arrependiam, mas aí já era tarde...).
Produzimos fotos promocionais em que o cenário era a rampa da própria oficina (coloquei no blog as únicas que trouxe comigo). Colávamos as fotos nas vitrines das lojas, e fazíamos propaganda dos shows rodando pela cidade, três ou quatro cantando e batucando na capota. À noite éramos a atração principal, anunciados como "Los Macunaíma, directamente de Brasil". O reforço dos cariocas Gastão no violão e Paulinho e Régis na percussão deu mais solidez e ritmo à banda, e os sambas e músicas de carnaval eram especialmente aplaudidos.
Maria Orminda, uma cearense de corpo fornido, parecido com os das índias quechuas, não cantava nem tocava instrumento algum, mas tinha um papel fundamental, especialmente quando o nosso desempenho não estava bom. Ela não se fazia de rogada quando eu pedia "rebola, Minda, rebola". Ninguém mais prestava atenção na música. Era um delírio.
Durante o dia, além de promover nossos shows, percorríamos as casas comerciais com um livro de ouro para pedir ajuda financeira. Nos apresentávamos como estudantes brasileiros em viagem de estudos que precisavam de apoio para conhecerem o país. Foi uma excelente idéia da Liana, que havia se tornado uma espécie de gerente da casa. Outra, também dela: visitávamos fábricas de alimentos e pedíamos doações. Conseguimos um bom estoque de leite (em pó, condensado), macarrão e outros produtos. Duraram semanas, e acabaram nos causando incômodas prisões de ventre.
Nossa temporada era um sucesso, tínhamos dinheiro e alimentação garantidos. Sem problemas, digamos, logísticos, poderíamos continuar viajando o tempo e para onde quiséssemos. Sempre haveria palcos, praças e pessoas dispostas a ajudar estes jovens estudantes, simpáticos e talentosos, numa fascinante viagem de estudos. Mas aí começaram nossos problemas com as drogas. Em vez de bicarbonato, provamos a puríssima cocaína boliviana. Depois o LSD, trazido por norteamericanos e europeus.
Era cada vez mais difícil reunir a turma para ensaiar e até mesmo para almoçar no horário marcado pelos donos dos restaurantes. Uns ou outros passavam a noite em claro, depois de cheirar algumas carreiras, e passavam a maior parte do dia dormindo. Quando acordavam, só pensavam em sair para " batalhar um pozinho". Começaram as brigas entre nós e entre os casais que havia se formado no grupo. O dinheiro, guardado em caixa único, sumia, sem que ninguém soubesse quem pegou e para que.
O carnaval havia passado, não tínhamos shows para fazer, a cidade já não oferecia novos atrativos. Era hora de partir.
DIABLADAS
É carnaval em Oruro. Mas um carnaval diferente. Em vez de samba e mulheres desnudas, o que se vê pelas ruas são desfiles de pessoas com máscaras representando o que os padres espanhóis descreviam como o diabo, na época em que o império Inca foi convertido, a ferro e fogo, ao catolicismo. Apesar das danças, chamadas "diabladas", terem sido proibidas pelos colonizadores no século XVII, acabaram revivendo, e desde a década de 40, no mês de fevereiro, os índios fazem máscaras de gesso pintadas de cores fortes, de feições horrendas, com chifres retorcidos. Há pelo menos 20 grupos organizados na cidade. As mulheres desfilam com suas roupas coloridas. Muitas exibem colares, anéis e brincos de ouro e prata. A diablada não existia antes dos espanhóis chegarem. Ao aprenderem com os padres que o diabo habitava as profundezas da terra e Deus o céu, os índios, pressionados a acharem veios de ouro e prata, e depois a trabalharem nas minas em condições precaríssimas, acharam natural manter relações pelo menos cordiais com quem, desde a criação do mundo, já morava lá. Nas últimas décadas esta crença virou folclore e motivação para uma festa alegre e colorida, que mobiliza cerca de 10 mil foliões e atrai turistas de todo país. Mesmo assim, encerradas as diabladas, todos correm à catedral dedicada à Virgem da Candelária, sucessora da Pachamama das suas tradições ancestrais, para pedirem perdão.
Peças teatrais em que Deus acaba vencendo o demônio ou o Arcanjo Miguel derrota Lúcifer, que também servem para aliviar a consciência culpada dos foliões, completam os 10 dias e 10 noites de festas ininterruptas, embaladas pela excelente cerveja Paceña.
TOURO SENTADO
"Eu sou um filho da puta", exclamou Régis, num daqueles repés de cocaína em que só outra dose nos tira do desânimo profundo, daquele estado incômodo de não ter energia para nada, o corpo exaurido pelo estímulo da droga que durante muitas horas o dispensou de alimento e de sono.
Nós o cercamos para ouvir o seu desabafo e consolá-lo. Afinal, aquele carioca da gema de quase dois metros de altura, corpulento, moreno de olhos verdes, era gente fina. Foi ele que comprou o ônibus já desativado do transporte coletivo, reformou-o e o adaptou para servir de casa. Foi dele a idéia de atravessar os três continentes, junto com dois amigos e vizinhos de Copacabana. Só a saudade da praia e eventuais bodes por excesso de álcool ou drogas tiravam o seu bom humor. Era um líder nato, para o bem ou para o mal.
Mais calmo, Régis explicou que era mesmo um filho da puta. A mãe dele "se virava" em Copacabana, e, anos depois, quando ele já era adolescente, ela passou a ganhar a vida vendo cartas, fazendo "trabalhos" para abrir os caminhos da vida e do amor e, às vezes, apelando para transes em que os santos baixavam nela para apontar respostas para as aflições das clientes. Desde então, o filho apoiava a mãe na farsa, e às vezes cantava pontos de macumba, como este: "Pai Joaquim, êê, pai Joaquim êá, pai Joaquim é rei de Angola, pai Joaquim é de Angolangolá" .
Alguns dias depois, Régis declarou que havia incorporado nele o espírito do cacique Touro Sentado. Foi a um barbeiro e pediu para cortar todo o cabelo dos dois lados da cabeça, deixando só uma franja, de alto a baixo. Nas semanas seguintes, por várias vezes, eu "pelei" a cabeça dele, com uma navalha, depois de passar creme de barbear, claro. A nova personalidade de Régis foi rapidamente aceita pelo nosso grupo e pelos moradores dos lugares onde passávamos (para eles, era o Toro Sentao...). Ele voltou ao Brasil de Lima, ainda como Touro Sentado.
Nós o cercamos para ouvir o seu desabafo e consolá-lo. Afinal, aquele carioca da gema de quase dois metros de altura, corpulento, moreno de olhos verdes, era gente fina. Foi ele que comprou o ônibus já desativado do transporte coletivo, reformou-o e o adaptou para servir de casa. Foi dele a idéia de atravessar os três continentes, junto com dois amigos e vizinhos de Copacabana. Só a saudade da praia e eventuais bodes por excesso de álcool ou drogas tiravam o seu bom humor. Era um líder nato, para o bem ou para o mal.
Mais calmo, Régis explicou que era mesmo um filho da puta. A mãe dele "se virava" em Copacabana, e, anos depois, quando ele já era adolescente, ela passou a ganhar a vida vendo cartas, fazendo "trabalhos" para abrir os caminhos da vida e do amor e, às vezes, apelando para transes em que os santos baixavam nela para apontar respostas para as aflições das clientes. Desde então, o filho apoiava a mãe na farsa, e às vezes cantava pontos de macumba, como este: "Pai Joaquim, êê, pai Joaquim êá, pai Joaquim é rei de Angola, pai Joaquim é de Angolangolá" .
Alguns dias depois, Régis declarou que havia incorporado nele o espírito do cacique Touro Sentado. Foi a um barbeiro e pediu para cortar todo o cabelo dos dois lados da cabeça, deixando só uma franja, de alto a baixo. Nas semanas seguintes, por várias vezes, eu "pelei" a cabeça dele, com uma navalha, depois de passar creme de barbear, claro. A nova personalidade de Régis foi rapidamente aceita pelo nosso grupo e pelos moradores dos lugares onde passávamos (para eles, era o Toro Sentao...). Ele voltou ao Brasil de Lima, ainda como Touro Sentado.
UM ALEGRE ESTELIONATO MUSICAL
Contribuição do Dodo, o então estudante de medicina e hoje médico Lourival Gonçalves, parceiro musical daquela viagem e grande amigo até hoje:
"Duas músicas me evocam a passagem por Oruro. Uma delas é um tipo de hino da cidade, e a parte que me lembro era assim: "Cuando yo me vaya lejos de Oruro, cuando yo me vaya lejos de Oruro, morenada cantaré, morenada ai si, morenada bailaré, con todito corazón...". A outra tem uma pequena e saborosa história. Quando nos despedíamos do local, estacionamento, onde estivéramos por vários dias para conserto do ônibus, uma jovem de 15 anos, filha do dono e que se tornara uma espécie de fã daquele grupo de viajantes músicos, pediu a cada um que deixássemos gravada uma música no seu gravador Philips, ( uma caixinha preta muito conhecida na época). Quando chegou a minha vez eu convidei o Alemão Clóvis para tocarmos Greenleaves to a ground, uma canção renascentista muito em voga nos anos 60 e 70. Eu na flauta doce e o Clóvis no violão, já estávamos bem afiados de tanto tocá-la. Assim, eu disse: " Clóvis , vamos tocar a "nossa" música."
Em La Paz nos dividiríamos, e nos encontramos em Lima, Peru, uns dois meses depois. O Paulinho me diz:
- Dodo, sabe que em Macchu Picchu havia um cara, um francês tocando aquela sua música? (e cantarolou o Greenleaves ) e continuou:
- Aí eu disse que aquela música era de um amigo .
Eu, claro, tive que perguntar "E o que o sujeito disse?"
-Nada, só ficou me olhando, acho que não acreditou .
O Paulinho me colocou simplesmente como parceiro do rei Henrique Oitavo, o autor dos lyrics. "
Nota do editor: assim como as diabladas, as morenadas eram músicas típicas de Oruro, cantadas e dançadas no carnaval e também durante o resto do ano.
"Duas músicas me evocam a passagem por Oruro. Uma delas é um tipo de hino da cidade, e a parte que me lembro era assim: "Cuando yo me vaya lejos de Oruro, cuando yo me vaya lejos de Oruro, morenada cantaré, morenada ai si, morenada bailaré, con todito corazón...". A outra tem uma pequena e saborosa história. Quando nos despedíamos do local, estacionamento, onde estivéramos por vários dias para conserto do ônibus, uma jovem de 15 anos, filha do dono e que se tornara uma espécie de fã daquele grupo de viajantes músicos, pediu a cada um que deixássemos gravada uma música no seu gravador Philips, ( uma caixinha preta muito conhecida na época). Quando chegou a minha vez eu convidei o Alemão Clóvis para tocarmos Greenleaves to a ground, uma canção renascentista muito em voga nos anos 60 e 70. Eu na flauta doce e o Clóvis no violão, já estávamos bem afiados de tanto tocá-la. Assim, eu disse: " Clóvis , vamos tocar a "nossa" música."
Em La Paz nos dividiríamos, e nos encontramos em Lima, Peru, uns dois meses depois. O Paulinho me diz:
- Dodo, sabe que em Macchu Picchu havia um cara, um francês tocando aquela sua música? (e cantarolou o Greenleaves ) e continuou:
- Aí eu disse que aquela música era de um amigo .
Eu, claro, tive que perguntar "E o que o sujeito disse?"
-Nada, só ficou me olhando, acho que não acreditou .
O Paulinho me colocou simplesmente como parceiro do rei Henrique Oitavo, o autor dos lyrics. "
Nota do editor: assim como as diabladas, as morenadas eram músicas típicas de Oruro, cantadas e dançadas no carnaval e também durante o resto do ano.
LA PAZ VISTA DE EL ALTO
CALIFORNIA SUNSHINE
Acordei ao amanhecer, com um ruído que vinha da rua. Parecia que estavam raspando o chão. Abri a janela do nosso ônibus-casa, estacionado na praça do Montículo, uma colina de La Paz, e vi um grupo de índias varrendo vigorosamente as calçadas e o meio-fio com enormes vassouras feitas com arbustos. Eu dormia dentro do meu saco de dormir, na parte de trás do ônibus, em cima de um balcão usado como depósito de materiais. Na parte da frente havia dois conjuntos de beliches. Numa das camas de cima, o Dodo também se acordava. Estávamos sós. Ele olhou para mim e começou a mover as pernas para descer. Comecei a rir: as pernas dele pareciam flexíveis, como a do Máskara. Esticaram até o chão, enquanto a cabeça e o resto do corpo se mantinham sobre a cama.
Ele olhou para mim e também começou a rir - também devia estar me achando diferente. Começamos a conversar e nos lembramos que ainda estava escuro quando o Régis nos acordou, disse para abrirmos a boca e colocou dentro um comprimido avisando que era ácido - um Califórnia Sunshine. Vestimos roupas confortáveis e saímos.
A primeira mudança que senti foi no olfato. Ainda na praça, cercada de eucaliptos, parei para respirar fundo e sentir o perfume das árvores. Engraçado, estávamos alí há mais de uma semana e eu nunca havia reparado que elas exalavam um perfume tão delicioso. Ficamos ali, mudos, olhando a paisagem. Os diferentes tons de verde das montanhas que cercam a cidade se tornaram mais vivos, contrastando com a cor de barro das casas.
Saímos a caminhar, e já no subúrbio entramos num boteco escuro e pedimos picolés. Eram daqueles de groselha, feitos em casa, e quando coloquei na boca, senti o líquido gelado de sabor metálico molhar a língua e descer pela garganta. Enquanto analisava o que estava acontecendo, senti os olhares de alguns índios cravados em nós. Estavam sentados em mesas no fundo do bar bebendo cerveja, e devem ter nos achado seres de outro mundo. Começaram a rir, começamos a rir com eles, e o riso se tornou incontrolável para todos. Pagamos os picolés e saímos, dando gargalhadas e ouvindo as gargalhadas deles.
Eu imagino La Paz como uma imensa metade de uma casca de ovo cortada longitudinalmente. A cidade foi edificada na sua parte mais baixa, e é cercada de paredões que sobem até o altiplano, a quatro mil metros de altura. Subimos pelas ruelas de um bairro miserável de pequenas casas de barro encravadas na montanha até chegar à parte mais alta, desabitada, onde a chuva e o vento esculpiram o que me pareceram bustos humanos na terra vermelha. Ficamos junto a eles, olhando a cidade lá de cima. Para nós, aquelas figuras eram velhos caciques, observando, século após século, a decadência de seu povo, submetido primeiro aos conquistadores espanhóis e depois às grandes companhias mineradoras que reduziram quase toda a população indígena à miséria. Antes de começarmos a descida me despedi deles desejando, emocionado, que um dia a Bolívia superasse a submissão aos exploradores estrangeiros e recuperasse o seu orgulho e o direito a usufruir de suas riquezas.
Ele olhou para mim e também começou a rir - também devia estar me achando diferente. Começamos a conversar e nos lembramos que ainda estava escuro quando o Régis nos acordou, disse para abrirmos a boca e colocou dentro um comprimido avisando que era ácido - um Califórnia Sunshine. Vestimos roupas confortáveis e saímos.
A primeira mudança que senti foi no olfato. Ainda na praça, cercada de eucaliptos, parei para respirar fundo e sentir o perfume das árvores. Engraçado, estávamos alí há mais de uma semana e eu nunca havia reparado que elas exalavam um perfume tão delicioso. Ficamos ali, mudos, olhando a paisagem. Os diferentes tons de verde das montanhas que cercam a cidade se tornaram mais vivos, contrastando com a cor de barro das casas.
Saímos a caminhar, e já no subúrbio entramos num boteco escuro e pedimos picolés. Eram daqueles de groselha, feitos em casa, e quando coloquei na boca, senti o líquido gelado de sabor metálico molhar a língua e descer pela garganta. Enquanto analisava o que estava acontecendo, senti os olhares de alguns índios cravados em nós. Estavam sentados em mesas no fundo do bar bebendo cerveja, e devem ter nos achado seres de outro mundo. Começaram a rir, começamos a rir com eles, e o riso se tornou incontrolável para todos. Pagamos os picolés e saímos, dando gargalhadas e ouvindo as gargalhadas deles.
Eu imagino La Paz como uma imensa metade de uma casca de ovo cortada longitudinalmente. A cidade foi edificada na sua parte mais baixa, e é cercada de paredões que sobem até o altiplano, a quatro mil metros de altura. Subimos pelas ruelas de um bairro miserável de pequenas casas de barro encravadas na montanha até chegar à parte mais alta, desabitada, onde a chuva e o vento esculpiram o que me pareceram bustos humanos na terra vermelha. Ficamos junto a eles, olhando a cidade lá de cima. Para nós, aquelas figuras eram velhos caciques, observando, século após século, a decadência de seu povo, submetido primeiro aos conquistadores espanhóis e depois às grandes companhias mineradoras que reduziram quase toda a população indígena à miséria. Antes de começarmos a descida me despedi deles desejando, emocionado, que um dia a Bolívia superasse a submissão aos exploradores estrangeiros e recuperasse o seu orgulho e o direito a usufruir de suas riquezas.
BOLÍVIA, UM PAÍS TRAUMATIZADO
La Paz foi um choque de realidade boliviana. Em fevereiro de 1972 a capital ainda estava traumatizada pelo golpe militar ocorrido seis meses antes. Liderado pelo general ultra-direitista Hugo Banzer, com o apoio dos regimes militares militares brasileiro e argentino (o Chile ainda era presidido por Salvador Allende, deposto um ano e meio depois), o novo governo acabou com a atividade política e sindical do país, prendeu e matou quem ousou se opor a ele.
O imponente edifício da Universidade de La Paz, localizado numa avenida central da cidade, ainda tinha as marcas dos ataques do exército e de aviões da Força Aérea. Reduto de resistência de estudantes e mineiros, suas paredes estavam perfuradas pelas balas das metralhadoras, com quase todos os vidros da fachada quebrados.
Líderes estudantis nos visitavam para contar histórias de violência, de heroísmo, de desilusão, de impotência diante do obscurantismo. A descrença no futuro do país era tanta que até a sua dissolução e divisão entre o Chile, o Brasil, a Argentina e o Peru era defendida por boa parte deles.
Também vieram ao ônibus falar conosco alguns rapazes bem vestidos, cabelos curtos e barba feita que se diziam paramilitares a serviço do novo regime. Nos levaram de carro para visitar a sede de seu grupo, denominado Os Falcões, num edifício moderno de um bairro de classe alta. Eles contaram que haviam sido treinados e armados por militares para darem apoio ao golpe, e se vangloriavam de terem tido uma participação importante na invasão da universidade. Mostrando revólveres, disseram que garantiriam a nossa segurança. Foi uma das poucas vezes em que sentimos medo. Felizmente eles não vieram mais ao ônibus.
Em compensação, a cada dia apareciam mais e mais malucos, curiosos, traficantes, pessoas interessadas em vender ou trocar alguma coisa. Começamos a perder o controle da situação. Numa manhã, parte do grupo havia sumido com metade dos instrumentos musicais e todo dinheiro da caixinha. Na volta, no dia seguinte, os fujões contaram que tinham tomado um ácido e ido até Oruro com alguns bolivianos para um encontro de jovens. Voltaram sem os instrumentos - e sem dinheiro, claro.
O imponente edifício da Universidade de La Paz, localizado numa avenida central da cidade, ainda tinha as marcas dos ataques do exército e de aviões da Força Aérea. Reduto de resistência de estudantes e mineiros, suas paredes estavam perfuradas pelas balas das metralhadoras, com quase todos os vidros da fachada quebrados.
Líderes estudantis nos visitavam para contar histórias de violência, de heroísmo, de desilusão, de impotência diante do obscurantismo. A descrença no futuro do país era tanta que até a sua dissolução e divisão entre o Chile, o Brasil, a Argentina e o Peru era defendida por boa parte deles.
Também vieram ao ônibus falar conosco alguns rapazes bem vestidos, cabelos curtos e barba feita que se diziam paramilitares a serviço do novo regime. Nos levaram de carro para visitar a sede de seu grupo, denominado Os Falcões, num edifício moderno de um bairro de classe alta. Eles contaram que haviam sido treinados e armados por militares para darem apoio ao golpe, e se vangloriavam de terem tido uma participação importante na invasão da universidade. Mostrando revólveres, disseram que garantiriam a nossa segurança. Foi uma das poucas vezes em que sentimos medo. Felizmente eles não vieram mais ao ônibus.
Em compensação, a cada dia apareciam mais e mais malucos, curiosos, traficantes, pessoas interessadas em vender ou trocar alguma coisa. Começamos a perder o controle da situação. Numa manhã, parte do grupo havia sumido com metade dos instrumentos musicais e todo dinheiro da caixinha. Na volta, no dia seguinte, os fujões contaram que tinham tomado um ácido e ido até Oruro com alguns bolivianos para um encontro de jovens. Voltaram sem os instrumentos - e sem dinheiro, claro.
AS NEVES DO CHACALTAYA
Subir até o topo do Chacaltaia, a 5.300 metros de altitude, para conhecer a mais alta pista de esqui do mundo, foi idéia do Serginho. Irriquieto, simpático e envolvente, foi o Sergio Ferreira de Mattos, numa das memoráveis festas que promovia no casarão da sua família em Petrópolis, que nos convenceu a desbravar a desconhecida América Latina em vez de, como os outros, partir para a Europa.
A pista de esqui estava fechada desde o golpe militar, mas fomos informados que a estrada dava passagem, até para o ônibus. E, afinal, a recompensa seria o nosso primeiro contato com a neve. Resolvemos correr o risco. Foram cerca de 2.300 metros de subida por uma estrada de chão estreita, sem movimento, perigosíssima, cheia de curvas fechadas. Virar à direita não tinha problema, mas quando elas eram para a esquerda tínhamos que dar marcha-a- ré para vencê-las, pois uma pedra na estrada entre Oruro e La Paz havia danificado a suspensão do Grilo. A operação era dificultada porque o freio só brecava o pesado veículo depois de quatro ou cinco "bombeadas" no pedal. Enquanto um dirigia, outro – quase sempre eu – ficava na porta, com um calço, para saltar e colocar embaixo da roda dianteira, por garantia, caso o freio não funcionasse a tempo. Os outros ficavam apreciando a beleza do panorama ... e rezando para não despencar no precipício.
Nossos anjos da guarda estavam atentos naquela manhã de sol, e conseguimos chegar até o portão da estação de esqui abandonada. Estávamos no meio da neve, neve de verdade, farta, que cobria todo o topo da montanha. Saltamos do ônibus e, embriagados de felicidade, começamos a brincar, fazer bolas para jogar uns nos outros, rolar na superfície branca e fofa. Os teleféricos desativados não me impediram de sentir a sensação de esquiar, deslizando alguns metros montanha abaixo de pé mesmo, sobre a sola das botas.
Fazia muito frio, nossas mãos estavam congelando, mas ninguém ligava. No fim da tarde nos recolhemos para passar uma longa noite em que a temperatura certamente chegou abaixo de zero. Meu saco de dormir não aquecia o suficiente para pegar no sono, mesmo mantendo as roupas e o casaco. A maior vítima do frio foi um de nós - não me lembro quem, e se lembrasse não revelaria - que estava com diarreia e, volta e meia, tinha que sair e expor o traseiro ao vento gélido. Os gritos dele varavam a noite.
A descida, na manhã seguinte, foi tranquila. O motor resistiu – havíamos retirado a água do radiador para que, ao congelar, ela não estourasse a tubulação - e na descida era bem mais fácil vencer as curvas da estrada. O Chacaltaia voltara a ser uma apenas mais uma montanha na linha do horizonte de La Paz.
NOSOTROS, LOS LATINOS...
Na Argentina: "nosotros los Argentinos somos muy sentimentales
Na Bolívia: "nosotros los bolivianos somos muy sentimentales"
No Peru: "nosotros los peruanos somos muy sentimentales
Do Uruguai até o México, é sempre igual:
nosotros, los latinos, somos muuuuuuy sentimentales...
Principalmente depois de meia dúzia de cervejas.
Na Bolívia: "nosotros los bolivianos somos muy sentimentales"
No Peru: "nosotros los peruanos somos muy sentimentales
Do Uruguai até o México, é sempre igual:
nosotros, los latinos, somos muuuuuuy sentimentales...
Principalmente depois de meia dúzia de cervejas.
HORA DE PARTIR
A convivência de onze jovens no espaço exíguo de um pequeno ônibus, semana após semana, é normalmente complicada. Some-se aos problemas naturais o consumo de drogas, a nossa inexperiência em vida comunitária e o fato de parte do grupo – os cariocas – serem praticamente desconhecidos para nós, os gaúchos, e o resultado foi o previsto: um racha.
Já em Oruro, passada a fase do deslumbramento com os novos companheiros, ficara clara a divisão entre os três cariocas (havia disputas também entre eles) e nós, que saíramos de Porto Alegre com um projeto comum e tínhamos relações de amizade. Régis, incontrolável, tomara sete ácidos de uma vez, sumira por dias, torrara o dinheiro que era de todos. Depois de uma violenta discussão entre ele e Serginho, que acabou envolvendo a todos, arrumamos as nossas mochilas para abandonar o ônibus e continuar de carona. Além das baixarias aprontadas pelos cariocas, havia também uma divergência de timing: parte de nós queria seguir mais rápido, e a outra preferia ficar mais tempo em cada cidade, para curtí-la melhor.
Acabei ficando no ônibus, junto com o Dodo e a Nara (que ainda namorava o carioca Gastão). Estava ansioso para chegar logo ao Peru – e também cedi ao comodismo de viajar com um teto e uma cama. A despedida foi muito triste, especialmente para mim, que deixava os meus amigos e colegas de faculdade. Decidimos partir ainda naquela noite – estávamos sendo vigiados pela polícia, e tínhamos medo de sermos presos a qualquer momento. O entra-e-sai de traficantes e outros marginais era visível demais. Para dar um exemplo do nível dos nossos visitantes, vejam o que escrevi no meu diário da época: " Pegaram carona conosco nossos amigos Joe Camera Lenta, vapor de coca e ladrão (uma noite apareceu com um gravador enorme, roubado) e Chocho, famoso transador de tudo. Camera Lenta se mandou na saída da cidade. Chocho continuou até a fronteira com o Peru. Agora está em cana."
Subimos a tortuosa e íngreme estrada que liga o centro de La Paz ao bairro-cidade de El Alto. Lá, perto do aeroporto, o motor se entregou e tivemos que parar para dormir. De manhã, caminhei até a borda da encosta de onde se vê a cidade. A névoa dava ao cenário um clima surreal – parecia que eu era personagem de um filme. Olhei para os lados, e vi que vários hermanos haviam tido a mesma idéia que eu: dar uma cagada olhando a paisagem...
Já em Oruro, passada a fase do deslumbramento com os novos companheiros, ficara clara a divisão entre os três cariocas (havia disputas também entre eles) e nós, que saíramos de Porto Alegre com um projeto comum e tínhamos relações de amizade. Régis, incontrolável, tomara sete ácidos de uma vez, sumira por dias, torrara o dinheiro que era de todos. Depois de uma violenta discussão entre ele e Serginho, que acabou envolvendo a todos, arrumamos as nossas mochilas para abandonar o ônibus e continuar de carona. Além das baixarias aprontadas pelos cariocas, havia também uma divergência de timing: parte de nós queria seguir mais rápido, e a outra preferia ficar mais tempo em cada cidade, para curtí-la melhor.
Acabei ficando no ônibus, junto com o Dodo e a Nara (que ainda namorava o carioca Gastão). Estava ansioso para chegar logo ao Peru – e também cedi ao comodismo de viajar com um teto e uma cama. A despedida foi muito triste, especialmente para mim, que deixava os meus amigos e colegas de faculdade. Decidimos partir ainda naquela noite – estávamos sendo vigiados pela polícia, e tínhamos medo de sermos presos a qualquer momento. O entra-e-sai de traficantes e outros marginais era visível demais. Para dar um exemplo do nível dos nossos visitantes, vejam o que escrevi no meu diário da época: " Pegaram carona conosco nossos amigos Joe Camera Lenta, vapor de coca e ladrão (uma noite apareceu com um gravador enorme, roubado) e Chocho, famoso transador de tudo. Camera Lenta se mandou na saída da cidade. Chocho continuou até a fronteira com o Peru. Agora está em cana."
Subimos a tortuosa e íngreme estrada que liga o centro de La Paz ao bairro-cidade de El Alto. Lá, perto do aeroporto, o motor se entregou e tivemos que parar para dormir. De manhã, caminhei até a borda da encosta de onde se vê a cidade. A névoa dava ao cenário um clima surreal – parecia que eu era personagem de um filme. Olhei para os lados, e vi que vários hermanos haviam tido a mesma idéia que eu: dar uma cagada olhando a paisagem...
UMA VIAGEM NO TITICACA
O ônibus parecia flutuar, a 80 quilômetros por hora, sobre a estrada de cascalho que liga La Paz à fronteira com o Peru. Todos estávamos viajando de ácido (inclusive o motorista), e apreciávamos silenciosos a paisagem de encostas cultivadas das montanhas de um lado e as margens do Lago Titicaca do outro, quando solavancos e um forte cheiro de borracha queimada nos trouxeram de volta à realidade. Dois pneus traseiros haviam estourado e estavam destruídos(o motorista deveria ter parado logo que o primeiro estourou, mas estava, digamos, distraído, e só se deu conta que havia algo errado quando não conseguiu mais controlar o veículo.
Ninguém estava com disposição para trocar os pneus, nem havia socorro ali, no meio do campo. Saímos caminhando pela beira do lago até encontrarmos um índio Uro com sua canoa de totora (o junco que cresce nas margens). Os Uros aproveitam tudo da totora: os talos tenros são dados para os animais, e o resto da planta, depois de amassado e desidratado, é transformado em canoas, casas e até ilhas artificiais, onde boa parte da tribo vive. Há nove delas flutuando no lago. No rio Guaíba e na Lagoa dos Patos existem juncos semelhantes.
Nossa caixa estava baixa: apenas 25 pesos bolivianos (o equivalente a cinco dólares), mas este era exatamente o preço que o índio cobrava para um passeio no seu barco. Foi um belo passeio pelas águas escuras e calmas do Titicaca, num dia ensolarado e sem vento. Quando voltamos para a margem, o efeito do ácido havia passado, e trocamos os pneus para seguir viagem.
Daí para a frente, as coisas ficaram mais difíceis. Estávamos sem dinheiro e sem a banda para ganhar algum, e o ônibus, maltratado em milhares de quilômetros de estradas precárias, subindo e descendo montanhas, mandava sinais de que não resistiria muito mais. Rodávamos com apenas quatro rodas (o rodado traseiro de um caminhão é de duas rodas de cada lado) e a cada poucos quilômetros tínhamos que parar para consertar algo. Outra dificuldade era a falta de colaboração dos moradores daquela região, acostumados a explorar os gringos. Nosso papo de "estudiantes brasileños sin plata" não pegava naquela região de turismo. Sermos tirados de um atoleiro por um trator nos custou uma bicicleta. Uma velha gritava que queria 50 pesos por ter nos emprestado um pedaço de madeira usada como alavanca. Mandamos ela à merda e dissemos em coro alguns palavrões em português.
Fomos em frente sem pagar, ouvindo suas maldições.
Ninguém estava com disposição para trocar os pneus, nem havia socorro ali, no meio do campo. Saímos caminhando pela beira do lago até encontrarmos um índio Uro com sua canoa de totora (o junco que cresce nas margens). Os Uros aproveitam tudo da totora: os talos tenros são dados para os animais, e o resto da planta, depois de amassado e desidratado, é transformado em canoas, casas e até ilhas artificiais, onde boa parte da tribo vive. Há nove delas flutuando no lago. No rio Guaíba e na Lagoa dos Patos existem juncos semelhantes.
Nossa caixa estava baixa: apenas 25 pesos bolivianos (o equivalente a cinco dólares), mas este era exatamente o preço que o índio cobrava para um passeio no seu barco. Foi um belo passeio pelas águas escuras e calmas do Titicaca, num dia ensolarado e sem vento. Quando voltamos para a margem, o efeito do ácido havia passado, e trocamos os pneus para seguir viagem.
Daí para a frente, as coisas ficaram mais difíceis. Estávamos sem dinheiro e sem a banda para ganhar algum, e o ônibus, maltratado em milhares de quilômetros de estradas precárias, subindo e descendo montanhas, mandava sinais de que não resistiria muito mais. Rodávamos com apenas quatro rodas (o rodado traseiro de um caminhão é de duas rodas de cada lado) e a cada poucos quilômetros tínhamos que parar para consertar algo. Outra dificuldade era a falta de colaboração dos moradores daquela região, acostumados a explorar os gringos. Nosso papo de "estudiantes brasileños sin plata" não pegava naquela região de turismo. Sermos tirados de um atoleiro por um trator nos custou uma bicicleta. Uma velha gritava que queria 50 pesos por ter nos emprestado um pedaço de madeira usada como alavanca. Mandamos ela à merda e dissemos em coro alguns palavrões em português.
Fomos em frente sem pagar, ouvindo suas maldições.
BARCO DE TOTORA
NOSSA SENHORA DE COPACABANA
O que é que Copacabana, cidade boliviana situada junto ao Lago Titicaca, tem a ver com o bairro homônimo do Rio de janeiro? Tudo.
Principal cidade do entorno do lago, Copacabana deve a sua criação à proximidade com a ilha do Sol, considerada sagrada pelos incas, que faziam peregrinações constantes até ela para pedir proteção aos deuses, bem antes da chegada dos espanhóis. O nome deriva de kota kahuana, que na língua aymará significa vista do lago. De embarcadouro de sacerdotes e peregrinos incas, o povoado passou, séculos depois, a local de veneração à Virgem de Copacabana, uma estátua de Nossa Senhora com feições indígenas esculpida em madeira no século XVI por Tito Yupanqui, um nativo convertido ao catolicismo que se dizia descendente direto da família real incaica .
No século XIX, uma réplica da imagem foi levada para o Rio de Janeiro e colocada numa pequena igreja construída por comerciantes espanhóis na área de chácaras e sítios que anos depois virou bairro e adotou o nome da virgem.
A Copacabana boliviana, situada 155 quilômetros ao norte de La Paz, ainda é ponto de partida para a ilha do Sol. Só que em vez de peregrinos incas, dá abrigo a turistas do mundo todo.
Ao chegarmos à cidade, no fim de uma tarde de sábado, não fazíamos idéia da origem do seu nome. Os cariocas chegaram a conjecturar que ele se devia à semelhança com o bairro onde nasceram – uma baía - e terminava num morro - com bastante esforço, poderia ser comparado ao do Leme. Mas não havia ninguém naquela praia de areia grossa e cascalho, muito menos tomando banho nas águas escuras e geladas do lago. O movimento se concentrava em torno da igreja, onde dezenas de barracas ofereciam pratos típicos, bebidas e recuerdos de la virgen.
Não tive dificuldades para vender o meu relógio para um devoto peruano que se saía da missa. Consegui 50 soles de oro ( moeda peruana) suficientes para saciar a nossa fome, depois de um dia de viagem em jejum. Para mim, aquela refeição teve um significado especial: me ensinou a evitar, sempre que possível, as comidas típicas vendidas em quiosques sem maiores cuidados higiênicos...
GOOD TIMES, BAD TIMES
Domingo é sempre dia de festa em Copacabana. Depois da missa, os padres saem para benzer os carros levados pelo seus donos até a frente da catedral, e durante todo o dia bolivianos, peruanos e gringos comem, bebem, passeiam pela cidade e visitam a ilha do Sol num dos barcos atracados no embarcadouro.
Nós também entramos no clima. Tomamos os nossos últimos ácidos, levamos o Grilo para o padre benzer e cada um curtiu o domingão ao seu modo. Dodo, por exemplo, achou que estava numa praia carioca, mesmo que aquela não tivesse calor, areia fininha e muito menos gatinhas bronzeadas de biquini. Tirou toda a roupa e deu um mergulho nas águas geladas do lago, para espanto de alguns cholos e cholitas que, vestidos com seus trajes típicos, almoçavam sentados na praia em torno de uma toalha de mesa onde havia carne de porco assada, legumes e verduras.
Sem dinheiro para passear de barco, nos limitamos a subir o Cerro do Calvário, com suas doze estações, onde nas sextas-feiras santas é representado o martírio de Cristo. Lá de cima se tem uma vista belíssima do lago, da cidade e da região. À noite, debruçados sobre o mapa, discutimos a próxima etapa da viagem. Nosso plano era ir até Puno, no Peru, ainda nas margens do Titicaca, e de lá seguir até Cusco para chegar a Macchu Picchu. Mas tínhamos um problema: o ônibus, apesar da benção recebida horas atrás, provavelmente não aguentaria mais uma jornada de subidas e descidas por estradas péssimas.
Na viagem até Puno, nossos temores se confirmaram. O sistema elétrico pifou, voltamos a ter pneus furados, o rendimento do motor era inversamente proporcional ao consumo de gasolina. Nos últimos quilômetros do território boliviano fomos parados várias vezes em postos militares improvisados. Soldados examinavam os papéis do veículo e os nossos documentos davam a entender que queriam propinas.
Para acalmá-los, nós os presenteávamos com pequenas réplicas de PMs feitas de borracha que o setor de Relações Públicas da Brigada Militar havia dado aos cariocas na passagem do ônibus por Porto Alegre. "Recuerdo de la policia de Brasil para ustedes", mentíamos.
Foi um alívio atravessar a fronteira, no dia 21 de fevereiro. Estávamos chegando a um país democrático, de governo populista empenhado em fazer reformas sociais.
A decisão de continuar para o norte ou desistir de Macchu Picchu causou uma nova cisão no nosso já reduzido grupo. Paulinho e Gastão queriam ir de qualquer jeito visitar as ruínas incas. Régis, o dono do ônibus, achou mais sensato descer a Cordilheira em direção ao Litoral – e ao asfalto. A palavra final foi dele, e pegamos a estrada para Arequipa, estreita e pedregosa. Os freios, desgastados pelas descidas intermináveis, funcionavam precariamente. A noite caiu e, sem faróis, tivemos que seguir o último trecho da viagem atrás de um caminhão. Quando ele se afastava, contávamos apenas com a lua cheia – e a proteção divina. A benção funcionou. Avistamos, logo ali, as luzes de Arequipa. A Cordilheira dos Andes ficara para trás, 1.500 metros acima.
Nós também entramos no clima. Tomamos os nossos últimos ácidos, levamos o Grilo para o padre benzer e cada um curtiu o domingão ao seu modo. Dodo, por exemplo, achou que estava numa praia carioca, mesmo que aquela não tivesse calor, areia fininha e muito menos gatinhas bronzeadas de biquini. Tirou toda a roupa e deu um mergulho nas águas geladas do lago, para espanto de alguns cholos e cholitas que, vestidos com seus trajes típicos, almoçavam sentados na praia em torno de uma toalha de mesa onde havia carne de porco assada, legumes e verduras.
Sem dinheiro para passear de barco, nos limitamos a subir o Cerro do Calvário, com suas doze estações, onde nas sextas-feiras santas é representado o martírio de Cristo. Lá de cima se tem uma vista belíssima do lago, da cidade e da região. À noite, debruçados sobre o mapa, discutimos a próxima etapa da viagem. Nosso plano era ir até Puno, no Peru, ainda nas margens do Titicaca, e de lá seguir até Cusco para chegar a Macchu Picchu. Mas tínhamos um problema: o ônibus, apesar da benção recebida horas atrás, provavelmente não aguentaria mais uma jornada de subidas e descidas por estradas péssimas.
Na viagem até Puno, nossos temores se confirmaram. O sistema elétrico pifou, voltamos a ter pneus furados, o rendimento do motor era inversamente proporcional ao consumo de gasolina. Nos últimos quilômetros do território boliviano fomos parados várias vezes em postos militares improvisados. Soldados examinavam os papéis do veículo e os nossos documentos davam a entender que queriam propinas.
Para acalmá-los, nós os presenteávamos com pequenas réplicas de PMs feitas de borracha que o setor de Relações Públicas da Brigada Militar havia dado aos cariocas na passagem do ônibus por Porto Alegre. "Recuerdo de la policia de Brasil para ustedes", mentíamos.
Foi um alívio atravessar a fronteira, no dia 21 de fevereiro. Estávamos chegando a um país democrático, de governo populista empenhado em fazer reformas sociais.
A decisão de continuar para o norte ou desistir de Macchu Picchu causou uma nova cisão no nosso já reduzido grupo. Paulinho e Gastão queriam ir de qualquer jeito visitar as ruínas incas. Régis, o dono do ônibus, achou mais sensato descer a Cordilheira em direção ao Litoral – e ao asfalto. A palavra final foi dele, e pegamos a estrada para Arequipa, estreita e pedregosa. Os freios, desgastados pelas descidas intermináveis, funcionavam precariamente. A noite caiu e, sem faróis, tivemos que seguir o último trecho da viagem atrás de um caminhão. Quando ele se afastava, contávamos apenas com a lua cheia – e a proteção divina. A benção funcionou. Avistamos, logo ali, as luzes de Arequipa. A Cordilheira dos Andes ficara para trás, 1.500 metros acima.
DIÁRIO DE BORDO
Arequipa, Peru, 23 de fevereiro de 1972
Hoje fazem dois meses que estou na estrada. Sentado num banco na praça, vendo o a luz do por-de-sol tingir de alaranjado o pico nevado do Misti, o vulcão que emoldura a paisagem da cidade, fico pensando nestes sessenta dias de viagens – sim, no plural - e o que teria acontecido se eu tivesse ficado em Porto Alegre em vez de cruzar o rio Uruguai. Até o dia do embarque eu levava a minha vidinha boa de estudante de jornalismo da Ufrgs. Tirava a faculdade de letra, com o mínimo esforço e o máximo prazer (enquanto havia bar, meu violão ficava lá, embaixo do balcão).
Ganhava dois salários mínimos trabalhando na Secretaria da Justiça à tarde – redigia memorandos, ofícios, guias de soltura de presos –, e mais um como estagiário, à noite, da rádio da Universidade, onde fui selecionado num concurso para locutor. Na madrugada, festas e namoro. Ah, eu também dormia algumas horas por noite, para na manhã seguinte estar de novo na faculdade. O quinto semestre vai começar daqui a alguns dias para a minha turma.
Que mudança!
Em vez de um Natal com pinheirinho, presépio e presentes, um vagão de trem no meio do deserto do Chaco, lotado de pessoas bêbadas, inclusive o cobrador. Na virada de ano, em Salta, o primeiro contato com as zambas, chacareras e o rico folclore argentino, ao ritmo do bombo legüero. E muito, muito vinho tinto. Na Bolívia as montanhas, as llamas, os índios dos povoados a nos olharem como extra-terrestres. El Condor Pasa tocado por queñas e charangos num cabaré de Oruro. As primeiras apresentações para grandes públicos. As dificuldades de convivência e de sobrevivência, o carinho e a desconfiança. As drogas com seus os delírios, a euforia, a paranóia, o medo e a fascinação frente ao desconhecido. As decisões difíceis, as rupturas.
A turma da faculdade ficou lá no altiplano. Eu já não sei o que virá daqui para a frente.
Cada dia é uma aventura, uma descoberta, um desafio.
Hoje fazem dois meses que estou na estrada. Sentado num banco na praça, vendo o a luz do por-de-sol tingir de alaranjado o pico nevado do Misti, o vulcão que emoldura a paisagem da cidade, fico pensando nestes sessenta dias de viagens – sim, no plural - e o que teria acontecido se eu tivesse ficado em Porto Alegre em vez de cruzar o rio Uruguai. Até o dia do embarque eu levava a minha vidinha boa de estudante de jornalismo da Ufrgs. Tirava a faculdade de letra, com o mínimo esforço e o máximo prazer (enquanto havia bar, meu violão ficava lá, embaixo do balcão).
Ganhava dois salários mínimos trabalhando na Secretaria da Justiça à tarde – redigia memorandos, ofícios, guias de soltura de presos –, e mais um como estagiário, à noite, da rádio da Universidade, onde fui selecionado num concurso para locutor. Na madrugada, festas e namoro. Ah, eu também dormia algumas horas por noite, para na manhã seguinte estar de novo na faculdade. O quinto semestre vai começar daqui a alguns dias para a minha turma.
Que mudança!
Em vez de um Natal com pinheirinho, presépio e presentes, um vagão de trem no meio do deserto do Chaco, lotado de pessoas bêbadas, inclusive o cobrador. Na virada de ano, em Salta, o primeiro contato com as zambas, chacareras e o rico folclore argentino, ao ritmo do bombo legüero. E muito, muito vinho tinto. Na Bolívia as montanhas, as llamas, os índios dos povoados a nos olharem como extra-terrestres. El Condor Pasa tocado por queñas e charangos num cabaré de Oruro. As primeiras apresentações para grandes públicos. As dificuldades de convivência e de sobrevivência, o carinho e a desconfiança. As drogas com seus os delírios, a euforia, a paranóia, o medo e a fascinação frente ao desconhecido. As decisões difíceis, as rupturas.
A turma da faculdade ficou lá no altiplano. Eu já não sei o que virá daqui para a frente.
Cada dia é uma aventura, uma descoberta, um desafio.
AREQUIPA, PERU
O FLORIPÔNDIO MÁGICO
Nossa temporada em Arequipa foi tranqüila. A temperatura amena da cidade, o primeiro contato com o Peru e os peruanos, a moçada bacana que nos visitava para ouvir e contar histórias, tudo contribuía para relaxar o ambiente que andava bastante tenso nas últimas semanas. Só não tínhamos drogas. Nem coca, nem LSD, nem maconha, nada.
Numa dessas, apareceu um cara dando uma dica quente: as flores de uma planta chamada floripôndio, cultivada nos jardins da cidade, proporcionavam viagens de até uma semana. Garantiu que o efeito era o mesmo do peyote, do LSD, dos cogumelos e cactus alucinógenos. Bastava colher e cozinhar.
E foi o que fizemos. As flores, semelhantes a lírios brancos, foram postas a cozinhar, horas e horas, até se tornarem uma pasta viscosa. Eu olhei para aquilo e dei pra trás. Recém havia me recuperado de uma terrível infecção intestinal causada por algum prato típico da região. Os outros tomaram, e o efeito foi devastador. Diarréias e vômitos, por dois, três dias. E o pior: nada de viagem. Nem uma tonturazinha...
Depois ficamos sabendo que o cozimento foi insuficiente, e os viajantes sentiram apenas os efeitos colaterais da droga. Droga...
Numa dessas, apareceu um cara dando uma dica quente: as flores de uma planta chamada floripôndio, cultivada nos jardins da cidade, proporcionavam viagens de até uma semana. Garantiu que o efeito era o mesmo do peyote, do LSD, dos cogumelos e cactus alucinógenos. Bastava colher e cozinhar.
E foi o que fizemos. As flores, semelhantes a lírios brancos, foram postas a cozinhar, horas e horas, até se tornarem uma pasta viscosa. Eu olhei para aquilo e dei pra trás. Recém havia me recuperado de uma terrível infecção intestinal causada por algum prato típico da região. Os outros tomaram, e o efeito foi devastador. Diarréias e vômitos, por dois, três dias. E o pior: nada de viagem. Nem uma tonturazinha...
Depois ficamos sabendo que o cozimento foi insuficiente, e os viajantes sentiram apenas os efeitos colaterais da droga. Droga...
DAS MONTANHAS(E O FRIO) PARA O MAR (E O CALOR)
Mais um racha. Os cariocas Paulinho e Gastão deixaram o ônibus para ir a Macchu Picchu. Nara foi junto com Gastão, e assim restaram apenas quatro dos onze que saíram de Salta. Da turma de Porto Alegre ficou apenas o Dodo. Em Arequipa ainda havíamos ganhado algum dinheiro cantando nas praças, mas daí para a frente teríamos que arranjar outro jeito de sobreviver. Aprendemos a fazer colares de cravos de ferrar cavalos (semelhantes a pregos, mas chatos, com cabeças grandes, de forma quadrada). Dobrávamos os cravos com alicates e amarrávamos dois ou três com barbante ou arame bem fino.
Na nossa "casa" o clima melhorou bastante. Régis estava eufórico por voltar a ver uma praia de mar, depois de dois meses de frio. Dodo e Pedro, tranqüilos, nunca causaram problemas. Revisamos o ônibus, enchemos o tanque e começamos a descer a cordilheira. À medida que a altitude diminuía, o calor aumentava. Tiramos os casacos, depois os blusões, e bem antes de chegarmos à praia já estávamos de calção e sem camisa, batendo bola no corredor do ônibus.
Nosso destino era o balneário de Mejía, próxima ao porto de Mollendo, onde a classe média e alta de Arequipa tem casas de veraneio. Ao estacionarmos, na beira da praia, fomos cercados pela gurizada, encantada com aquela novidade num final de temporada tedioso. Voltar a sentir calor e ouvi as ondas do mar nos deixou eufóricos. A pelada começou alí mesmo - nós contra os peruanos. Régis, o Touro Sentado, logo virou ídolo da turma. Eu, loiro e pálido por tantas semanas sem sol, fui imediatamente apelidado de fantasma.
Ficamos em Mejia por duas semanas. Nossos colares de cravos fizeram o maior sucesso, mais por serem diferentes do que pela beleza ou durabilidade (refizemos vários que se desconjuntaram depois de um ou dois dias de uso...). Trabalhávamos à noite, e de dia vendíamos tudo que havíamos feito. Esgotamos os estoques de "clavos de herraje" das ferragens de Mollendo. Ganhamos um bom dinheiro, com a vantagem de que éramos poucos e lá não havia drogas para comprar. Comemos e bebemos muito bem, nos divertimos muito com a moçada. Só não tomávamos banho de mar longos porque a água do Pacífico é gelada em toda a costa do Pacífico, do Chile ao Equador, devido à corrente Humboldt, que sobe direto da Antártida. Nossa festa terminou com o fim da temporada de veraneio. Já era março, as aulas recomeçaram e a praia ficou vazia. Era hora de partir.
Na nossa "casa" o clima melhorou bastante. Régis estava eufórico por voltar a ver uma praia de mar, depois de dois meses de frio. Dodo e Pedro, tranqüilos, nunca causaram problemas. Revisamos o ônibus, enchemos o tanque e começamos a descer a cordilheira. À medida que a altitude diminuía, o calor aumentava. Tiramos os casacos, depois os blusões, e bem antes de chegarmos à praia já estávamos de calção e sem camisa, batendo bola no corredor do ônibus.
Nosso destino era o balneário de Mejía, próxima ao porto de Mollendo, onde a classe média e alta de Arequipa tem casas de veraneio. Ao estacionarmos, na beira da praia, fomos cercados pela gurizada, encantada com aquela novidade num final de temporada tedioso. Voltar a sentir calor e ouvi as ondas do mar nos deixou eufóricos. A pelada começou alí mesmo - nós contra os peruanos. Régis, o Touro Sentado, logo virou ídolo da turma. Eu, loiro e pálido por tantas semanas sem sol, fui imediatamente apelidado de fantasma.
Ficamos em Mejia por duas semanas. Nossos colares de cravos fizeram o maior sucesso, mais por serem diferentes do que pela beleza ou durabilidade (refizemos vários que se desconjuntaram depois de um ou dois dias de uso...). Trabalhávamos à noite, e de dia vendíamos tudo que havíamos feito. Esgotamos os estoques de "clavos de herraje" das ferragens de Mollendo. Ganhamos um bom dinheiro, com a vantagem de que éramos poucos e lá não havia drogas para comprar. Comemos e bebemos muito bem, nos divertimos muito com a moçada. Só não tomávamos banho de mar longos porque a água do Pacífico é gelada em toda a costa do Pacífico, do Chile ao Equador, devido à corrente Humboldt, que sobe direto da Antártida. Nossa festa terminou com o fim da temporada de veraneio. Já era março, as aulas recomeçaram e a praia ficou vazia. Era hora de partir.
AS MARCAS DOS DEUSES ASTRONAUTAS
A costa peruana é desértica. Entre o mar e a cordilheira dos Andes só existe vegetação – e vida humana - nas margens dos poucos rios que descem das montanhas. São oásis onde floresceram algumas importantes civilizações pré-incaicas, entre as quais a Nazca, 450 quilômetros ao sul de Lima, conhecida pelos desenhos gigantescos traçados no solo, visíveis apenas do alto. Como na época em que foram traçadas não havia aviões nem satélites, até agora não surgiu uma explicação racional que explique o mistério.
O alemão Erich Von Däniken foi o maior responsável pela fama das chamadas Linhas de Nazca ao lançar, em 1968, o livro Eram os Deuses Astronautas. Para ele – e vários outros estudiosos – a costa peruana teria sido habitada por seres extra-terrestres, que ali tinham um aeroporto. A “pista de pouso” ainda está lá, assim como figuras humanas e de animais.
Na viagem de 700 quilômetros até Lima tivemos que passar alguns dias em Nazca, mas não nos ocorreu visitar o “aeroporto”. Estávamos preocupados demais em consertar o motor do ônibus e chegar o mais rápido possível à capital peruana. Os problemas mecânicos começaram já no primeiro dia. O bloco do motor não resistiu ao calor do deserto e rachou. Fiquei dois dias sozinho na estrada, esperando pela volta do Régis e do Pedro, que foram a Arequipa para vender uma máquina fotográfica e um rádio portátil para pagar o conserto. O Dodo, preocupado com o reinício das aulas na faculdade de Medicina, em Porto Alegre, havia pegado a primeira carona que apareceu rumo ao norte.
Decidimos viajar apenas à noite, quando a temperatura baixa, e descansar de dia. Éramos apenas três para nos revezar ao volante - já não havia mais disputa pela direção, como antes -, e pela primeira vez dirigi um veículo daquele tamanho, e num estado tão precário. A rodovia Pan-Americana, que corre paralelamente à costa, era, então, apenas uma estreita faixa de asfalto, sem sinalização. Em alguns trechos as dunas de areia avançavam sobre a pista. Os faróis fracos e desregulados e o cansaço eram dois inimigos perigosos naquelas madrugadas, e várias vezes achei que não conseguiria evitar uma colisão com os veículos que vinham em sentido contrário.
Saímos de Nazca num fim de tarde. Mais duas noites e estaríamos em Lima, a 450 quilômetros. Ainda bem que antecipamos a saída, porque ainda havia claridade suficiente para perceber que, logo adiante, a estrada sumira. A ponte havia sido levada pouco antes pelas águas do rio, numa enchente causada pelas chuvas em sua nascente. Sem sinalização, se estivesse escuro poderíamos ter caído nas águas.
O jeito foi dar meia-volta. Ao chegarmos à cidade, o óleo escorria do motor, novamente fundido. Havia conserto, mas a um preço bem caro. Sem dinheiro, trancados numa pequena cidade no meio do deserto, saímos a vender o que nos restava: um botijão de gás, equipamentos para revelação de filmes fotográficos, uma câmera. Juntamos o dinheiro suficiente para pagar o mecânico e comer e beber enquanto esperávamos a reabertura da ponte. Sem nada para fazer, chegamos a ir ao puteiro da cidade, um prédio quadrado, com um corredor sombrio onde as “meninas”, feias e velhas, ficavam paradas nas portas dos cubículos, à espera de clientes. Algumas delas deviam ser mais bonitas e jovens, pois havia portas fechadas, com filas de homens em frente a elas (índios mal vestidos, com roupas sujas e surradas) esperando a vez de curtirem os seus minutos de prazer. O calor sufocante e o mau cheiro completavam o quadro. Desistimos das putas e fomos a um bom restaurante jantar.
A poucos quilômetros dali, as Linhas da Nazca nos esperavam, em vão.
O alemão Erich Von Däniken foi o maior responsável pela fama das chamadas Linhas de Nazca ao lançar, em 1968, o livro Eram os Deuses Astronautas. Para ele – e vários outros estudiosos – a costa peruana teria sido habitada por seres extra-terrestres, que ali tinham um aeroporto. A “pista de pouso” ainda está lá, assim como figuras humanas e de animais.
Na viagem de 700 quilômetros até Lima tivemos que passar alguns dias em Nazca, mas não nos ocorreu visitar o “aeroporto”. Estávamos preocupados demais em consertar o motor do ônibus e chegar o mais rápido possível à capital peruana. Os problemas mecânicos começaram já no primeiro dia. O bloco do motor não resistiu ao calor do deserto e rachou. Fiquei dois dias sozinho na estrada, esperando pela volta do Régis e do Pedro, que foram a Arequipa para vender uma máquina fotográfica e um rádio portátil para pagar o conserto. O Dodo, preocupado com o reinício das aulas na faculdade de Medicina, em Porto Alegre, havia pegado a primeira carona que apareceu rumo ao norte.
Decidimos viajar apenas à noite, quando a temperatura baixa, e descansar de dia. Éramos apenas três para nos revezar ao volante - já não havia mais disputa pela direção, como antes -, e pela primeira vez dirigi um veículo daquele tamanho, e num estado tão precário. A rodovia Pan-Americana, que corre paralelamente à costa, era, então, apenas uma estreita faixa de asfalto, sem sinalização. Em alguns trechos as dunas de areia avançavam sobre a pista. Os faróis fracos e desregulados e o cansaço eram dois inimigos perigosos naquelas madrugadas, e várias vezes achei que não conseguiria evitar uma colisão com os veículos que vinham em sentido contrário.
Saímos de Nazca num fim de tarde. Mais duas noites e estaríamos em Lima, a 450 quilômetros. Ainda bem que antecipamos a saída, porque ainda havia claridade suficiente para perceber que, logo adiante, a estrada sumira. A ponte havia sido levada pouco antes pelas águas do rio, numa enchente causada pelas chuvas em sua nascente. Sem sinalização, se estivesse escuro poderíamos ter caído nas águas.
O jeito foi dar meia-volta. Ao chegarmos à cidade, o óleo escorria do motor, novamente fundido. Havia conserto, mas a um preço bem caro. Sem dinheiro, trancados numa pequena cidade no meio do deserto, saímos a vender o que nos restava: um botijão de gás, equipamentos para revelação de filmes fotográficos, uma câmera. Juntamos o dinheiro suficiente para pagar o mecânico e comer e beber enquanto esperávamos a reabertura da ponte. Sem nada para fazer, chegamos a ir ao puteiro da cidade, um prédio quadrado, com um corredor sombrio onde as “meninas”, feias e velhas, ficavam paradas nas portas dos cubículos, à espera de clientes. Algumas delas deviam ser mais bonitas e jovens, pois havia portas fechadas, com filas de homens em frente a elas (índios mal vestidos, com roupas sujas e surradas) esperando a vez de curtirem os seus minutos de prazer. O calor sufocante e o mau cheiro completavam o quadro. Desistimos das putas e fomos a um bom restaurante jantar.
A poucos quilômetros dali, as Linhas da Nazca nos esperavam, em vão.
AS LINHAS DE NAZCA
As linhas de Nazca foram feitas entre 200 a.C. e 600 d.C. ao longo de rios que desciam dos Andes. O deserto estende-se por mais de 1.400 milhas ao longo do Oceano Pacifico. A área de Nazca onde se encontram os desenhos tem 15 milhas de largura e corre ao longo de 37 milhas paralela aos Andes e ao mar. As pedras vermelho escuras e o solo foram limpas, expondo o subsolo mais claro, criando as "linhas".
AND VENUS WAS HER NAME
Amanhecia quando chegamos a Lima. Estacionamos na frente de uma lancheria no sofisticado bairro de Miraflores e cochilamos até que abrisse, às sete horas. O cheirinho de café, do pão recém torrado, o barulho do liquidificador nos trouxeram de volta à civilização. Foi o primeiro café da manhã “ocidental” desde a saída do Brasil: torradas de presunto e queijo, ovo frito, suco de laranja, café com leite.
Bastaram alguns dias na capital peruana para voltarmos a atrair a atenção dos malucos e dos curiosos de sempre. A década de 1970 recém começara, e as ondas do flower power, do amor livre e da contracultura, das drogas leves e pesadas chegavam com força a um Peru que respirava liberdade e tolerância no governo do general de centro-esquerda Juan Velasco Alvarado.
Os acordes de Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Joe Cooker e principalmente de Santana no Festival de Woodstock ainda ressoavam nos ouvidos dos jovens peruanos. A imprensa, censurada como nunca no Brasil, discutia livremente temas tabus como a coletivização das terras, as reformas sociais e a estatização das empresas petrolíferas estrangeiras, em andamento no país. O jornal mais combativo, o Extra, havia sido expropriado e passara para o controle dos jornalistas.
A loucura recomeçara, depois de algumas semanas de calmaria. Os cariocas que haviam subido a Cusco e Macchu Picchu voltaram, e Dodo nos reencontrou. O clima, porém, era de fim de festa, pois Régis, o dono do ônibus, cansado de tantos problemas, pirado de tanta droga, havia desistido de seguir adiante. Já não era mais o orgulhoso Touro Sentado, com seus cabelos cortados à moicano, mas apenas o jovem carioca ansioso em voltar para casa, no posto Seis de Copacabana. O sonho de levar o velho Chevrolet até Detroit para trocá-lo na GM por um motor-home zero quilômetro e seguir Canadá afora para depois retornar ao Brasil tinha se perdido nas quebradas dos Andes.
Tentamos vendê-lo, mas havia entraves burocráticos insuperáveis. Pensamos até em incendiá-lo, depois, claro, de chamar a imprensa. Enquanto o assunto não se resolvia, e o dinheiro das passagens de volta deles não chegava (eu nem pensava em voltar), passávamos os dias passeando pela cidade, comendo cebiche (peixe cru, curtido no limão) em barracas de praia.
Quando não havia dinheiro para comer numa chifa (os onipresentes restaurantes chineses ) matávamos a fome nos baratíssimos "comedores populares" (onde perdi um dente mordendo uma pedra misturada ao arroz). Provávamos todas as drogas que os novos amigos, na maioria moradores do bairro de alta classe média, ofereciam aos "hippies" brasileiros.
Num dia desses apareceu Venus. Bonita, alegre, sensual, pele cor de mel, trajada com vestidos indianos, era a versão peruana de Mariska Veres, a vocalista germano-hungara da banda holandesa Shocking Blue. O nome de guerra ela tirara de uma música que na época estourava nas paradas de sucesso da Europa, dos Estados Unidos e da América Latina, cujo refrão dizia “I'm your Venus, I' your fire, your desire”.
Ela logo nos conquistou. Chegava a qualquer hora do dia ou da noite, sempre trazendo alguma coisa – bebida, comida, fumo e tiradas bem-humoradas. Vi com ela o filme Zabriskie Point, de Antonioni, num cinema alternativo, mas estávamos muito doidos, viajando de ácido, para prestar atenção ao enredo. Eu não sabia mais se o que passava na tela era real ou alucinação (tive que ver o filme de novo quando voltei ao Brasil).
Na saída do cinema, no elevador lotado, nos olhamos e ela exclamou, deslumbrada com o filme e o ácido: "carajo!" Para logo corrigir, baixinho, diante dos olhares espantados dos cinéfilos, que também saíam do cinema: cara de ajo... E saímos do prédio dando gargalhadas.
And Venus was her (nick) name...
Venus
(Shoking Blue)
A goddess on a mountain top
burning like a silver flame,
Summit of beauty and love,
and Venus was her name.
She's got it, yeah baby, she's got it.
I'm your Venus, I'm your fire at your desire.
Her weapon's are her crystal eyes
making every man mad.
Black as the dark night she was,
got what no one else had.
She's got it, yeah baby, she's got it.
I'm your Venus, I'm your fire at your desire.
Well, I'm your Venus, I'm your fire at your desire.
Bastaram alguns dias na capital peruana para voltarmos a atrair a atenção dos malucos e dos curiosos de sempre. A década de 1970 recém começara, e as ondas do flower power, do amor livre e da contracultura, das drogas leves e pesadas chegavam com força a um Peru que respirava liberdade e tolerância no governo do general de centro-esquerda Juan Velasco Alvarado.
Os acordes de Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Joe Cooker e principalmente de Santana no Festival de Woodstock ainda ressoavam nos ouvidos dos jovens peruanos. A imprensa, censurada como nunca no Brasil, discutia livremente temas tabus como a coletivização das terras, as reformas sociais e a estatização das empresas petrolíferas estrangeiras, em andamento no país. O jornal mais combativo, o Extra, havia sido expropriado e passara para o controle dos jornalistas.
A loucura recomeçara, depois de algumas semanas de calmaria. Os cariocas que haviam subido a Cusco e Macchu Picchu voltaram, e Dodo nos reencontrou. O clima, porém, era de fim de festa, pois Régis, o dono do ônibus, cansado de tantos problemas, pirado de tanta droga, havia desistido de seguir adiante. Já não era mais o orgulhoso Touro Sentado, com seus cabelos cortados à moicano, mas apenas o jovem carioca ansioso em voltar para casa, no posto Seis de Copacabana. O sonho de levar o velho Chevrolet até Detroit para trocá-lo na GM por um motor-home zero quilômetro e seguir Canadá afora para depois retornar ao Brasil tinha se perdido nas quebradas dos Andes.
Tentamos vendê-lo, mas havia entraves burocráticos insuperáveis. Pensamos até em incendiá-lo, depois, claro, de chamar a imprensa. Enquanto o assunto não se resolvia, e o dinheiro das passagens de volta deles não chegava (eu nem pensava em voltar), passávamos os dias passeando pela cidade, comendo cebiche (peixe cru, curtido no limão) em barracas de praia.
Quando não havia dinheiro para comer numa chifa (os onipresentes restaurantes chineses ) matávamos a fome nos baratíssimos "comedores populares" (onde perdi um dente mordendo uma pedra misturada ao arroz). Provávamos todas as drogas que os novos amigos, na maioria moradores do bairro de alta classe média, ofereciam aos "hippies" brasileiros.
Num dia desses apareceu Venus. Bonita, alegre, sensual, pele cor de mel, trajada com vestidos indianos, era a versão peruana de Mariska Veres, a vocalista germano-hungara da banda holandesa Shocking Blue. O nome de guerra ela tirara de uma música que na época estourava nas paradas de sucesso da Europa, dos Estados Unidos e da América Latina, cujo refrão dizia “I'm your Venus, I' your fire, your desire”.
Ela logo nos conquistou. Chegava a qualquer hora do dia ou da noite, sempre trazendo alguma coisa – bebida, comida, fumo e tiradas bem-humoradas. Vi com ela o filme Zabriskie Point, de Antonioni, num cinema alternativo, mas estávamos muito doidos, viajando de ácido, para prestar atenção ao enredo. Eu não sabia mais se o que passava na tela era real ou alucinação (tive que ver o filme de novo quando voltei ao Brasil).
Na saída do cinema, no elevador lotado, nos olhamos e ela exclamou, deslumbrada com o filme e o ácido: "carajo!" Para logo corrigir, baixinho, diante dos olhares espantados dos cinéfilos, que também saíam do cinema: cara de ajo... E saímos do prédio dando gargalhadas.
And Venus was her (nick) name...
Venus
(Shoking Blue)
A goddess on a mountain top
burning like a silver flame,
Summit of beauty and love,
and Venus was her name.
She's got it, yeah baby, she's got it.
I'm your Venus, I'm your fire at your desire.
Her weapon's are her crystal eyes
making every man mad.
Black as the dark night she was,
got what no one else had.
She's got it, yeah baby, she's got it.
I'm your Venus, I'm your fire at your desire.
Well, I'm your Venus, I'm your fire at your desire.
A CIDADE DOS REIS
Lima foi fundada por Francisco Pizarro, o verdugo do império inca, em 1535, depois da conquista de Cuzco. Ganhou o nome de Cidade dos Reis, mas acabou adotando o nome derivado do quíchua Rimac, o rio que desagua na cidade . Hoje, com quase 8 milhões de habitantes, mantém seu antigo charme do período colonial, mas tem graves problemas d e abastecimento de água, saneamento e transportes, devido à migração em massa das populações indígenas do interior. Na foto, a catedral.
domingo, 12 de dezembro de 2010
ARTANE? SÓ PARA EPILEPSIA
Artane é um medicamento controladíssimo, usado para conter as convulsões de epilépticos. A dosagem tem que ser avaliada cuidadosamente pelo médico. Se for maior que a necessária, pode causar transtornos no cérebro, como alucinações. Alguém me ofereceu Artane. Eu tinha uma dose de LSD, tomei junto. Foram dois dias (ou três) de alucinações, alternadas com horas de sono. Eu andava pelas ruas de Lima e de repente via as árvores se tingirem de vermelho, se retorcerem e sumirem na calçada. Olhava para os lados e estava deitado no beliche do ônibus.
Já não distinguia o real do imaginário. Se estava falando com as pessoas ou se era sonho. Já não sabia se eu estava ali ou se daqui a pouco despertaria. Meu cérebro, afetado pela soma de LSD com Artane, não conseguia dividir consciência/sonho/pesadelo/realidade.
Voltei aos poucos. Nos primeiros dias, a memória se limitava a minutos.
Na cozinha (para tomar um copo d'água): “O que vim mesmo fazer aqui?”
Num grupo de conhecidos: “Quem são estes caras????"
Minha memória nunca mais foi a mesma depois do Artane.
Eu advirto: só tome Artane se o médico prescrever. Não vale a pena. É muito estrago.
Já não distinguia o real do imaginário. Se estava falando com as pessoas ou se era sonho. Já não sabia se eu estava ali ou se daqui a pouco despertaria. Meu cérebro, afetado pela soma de LSD com Artane, não conseguia dividir consciência/sonho/pesadelo/realidade.
Voltei aos poucos. Nos primeiros dias, a memória se limitava a minutos.
Na cozinha (para tomar um copo d'água): “O que vim mesmo fazer aqui?”
Num grupo de conhecidos: “Quem são estes caras????"
Minha memória nunca mais foi a mesma depois do Artane.
Eu advirto: só tome Artane se o médico prescrever. Não vale a pena. É muito estrago.
SEM O GRILO, A VIAGEM CONTINUA
Cumprida a sua missão, o Grilo Boca de Ouro – ou o que restava daquele motor-home que iniciara a viagem equipadíssimo e agora estava depenado, sem condições de rodar – só esperava o embarque de seus antigos donos de volta para o Brasil para a merecida aposentadoria. Com a ajuda da embaixada brasileira, havia sido doado para um Clube de Caça e Pesca de Lima.
Numa dessas idas à embaixada, em que também tratava de sua inclusão num vôo do Correio Aéreo Nacional para o Rio de Janeiro, Dodo encontrou dois amigos de infância de Cachoeira do Sul, Pedro Port e Mário André Coelho de Souza, o Dedeco. Eles haviam sido roubados no Chile, e estavam sem dinheiro nem documentos.
Queriam continuar na estrada – haviam saído há pouco tempo de Porto Alegre - , mas estavam se conformando em desistir, a menos que algo inesperado acontecesse. Conseguiram novos passaportes, vieram com Dodo conhecer a turma do ônibus e fomos apresentados. Estávamos na mesma situação: eu também não tinha dinheiro, nem companhia para continuar viajando, pois todos que estavam comigo já haviam arrumado as mochilas para voltar. Pior: ainda não havia me recuperado da desastrada experiência com Artane.
Batemos um bom papo, descobrimos afinidades, houve empatia imediata. Pedro, dez anos mais velho que eu, poeta e formado em filosofia, e Dedeco, estudante de sociologia e fotógrafo, da minha idade, também estavam curtindo cada momento daquela descoberta do continente sul-americano. Peguei o vilolão, comecei a cantar, e a solução surgiu: eu poderia cantar e ganhar dinheiro para irmos em frente, os três. Naquela tarde começou uma parceria que depois virou amizade e uma relação fraterna que sobreviveu, nos meses seguintes, às piores dificuldades.
Numa dessas idas à embaixada, em que também tratava de sua inclusão num vôo do Correio Aéreo Nacional para o Rio de Janeiro, Dodo encontrou dois amigos de infância de Cachoeira do Sul, Pedro Port e Mário André Coelho de Souza, o Dedeco. Eles haviam sido roubados no Chile, e estavam sem dinheiro nem documentos.
Queriam continuar na estrada – haviam saído há pouco tempo de Porto Alegre - , mas estavam se conformando em desistir, a menos que algo inesperado acontecesse. Conseguiram novos passaportes, vieram com Dodo conhecer a turma do ônibus e fomos apresentados. Estávamos na mesma situação: eu também não tinha dinheiro, nem companhia para continuar viajando, pois todos que estavam comigo já haviam arrumado as mochilas para voltar. Pior: ainda não havia me recuperado da desastrada experiência com Artane.
Batemos um bom papo, descobrimos afinidades, houve empatia imediata. Pedro, dez anos mais velho que eu, poeta e formado em filosofia, e Dedeco, estudante de sociologia e fotógrafo, da minha idade, também estavam curtindo cada momento daquela descoberta do continente sul-americano. Peguei o vilolão, comecei a cantar, e a solução surgiu: eu poderia cantar e ganhar dinheiro para irmos em frente, os três. Naquela tarde começou uma parceria que depois virou amizade e uma relação fraterna que sobreviveu, nos meses seguintes, às piores dificuldades.
FUGA DE LIMA
Pepe morava perto de onde estávamos estacionados, no bairro Miraflores, e todos os dias nos visitava. Tinha cerca de 20 anos, não estudava nem trabalhava. Passava os dias conosco, falando de seus projetos e sonhos. Vivia no mundo da lua - tinha sinais de esquizofrenia, mas ali ninguém era exatamente normal, e o achávamos apenas muito chato. Quando Régis, Dodo e os outros viajaram e eu, Pedro e Dedeco ficamos sem teto, Pepe nos convidou a ir para sua casa. Havia um quarto de hóspedes e seus pais haviam concordado em hospedar os novos amigos de seu filho por uns dias.
Era um apartamento independente da casa e ficara vago depois que um dos irmãos casou e se mudou. Ficamos até tarde da noite numa espécie de laboratório, instalado na garagem, onde ele passava o tempo imerso em suas invenções. A mais estranha delas era uma engenhoca que unia som e cor – as luzes projetadas na parede variavam de intensidade e cor de acordo com a música. Na verdade, só ele percebia os efeitos mágicos do invento – e exultava de alegria. Nós apenas ríamos e fingíamos apreciar o espetáculo. Encerrada a sessão, Pepe nos falou de seu novo projeto: um filme em bitola Super 8. Ele já havia escrito o roteiro e comprado a câmera, estava ansioso para começar a rodagem e nos convidou para participar da produção. Topamos a proposta na hora e elaboramos o roteiro das gravações, que começariam já no dia seguinte. Ao nos retirarmos para dormir, sugerimos levar conosco a câmera para estudá-la melhor e fazer uma “macumba”, costume brasileiro para dar sorte. Nosso plano, arquitetado em sussurros enquanto o lunático foi ao banheiro, era fugir com a câmera para vendê-la.
Tivemos uma certa dificuldade para separá-lo do aparelho, mas acabamos conseguindo. Dormimos algumas horas e antes de amanhecer já estávamos na estação rodoviária. Compramos passagens no primeiro horário para a cidade mais próxima e partimos, eufóricos. Só pensávamos em quanto dinheiro conseguiríamos com a venda. Será que seria suficiente para irmos até os Estados Unidos?
Era um apartamento independente da casa e ficara vago depois que um dos irmãos casou e se mudou. Ficamos até tarde da noite numa espécie de laboratório, instalado na garagem, onde ele passava o tempo imerso em suas invenções. A mais estranha delas era uma engenhoca que unia som e cor – as luzes projetadas na parede variavam de intensidade e cor de acordo com a música. Na verdade, só ele percebia os efeitos mágicos do invento – e exultava de alegria. Nós apenas ríamos e fingíamos apreciar o espetáculo. Encerrada a sessão, Pepe nos falou de seu novo projeto: um filme em bitola Super 8. Ele já havia escrito o roteiro e comprado a câmera, estava ansioso para começar a rodagem e nos convidou para participar da produção. Topamos a proposta na hora e elaboramos o roteiro das gravações, que começariam já no dia seguinte. Ao nos retirarmos para dormir, sugerimos levar conosco a câmera para estudá-la melhor e fazer uma “macumba”, costume brasileiro para dar sorte. Nosso plano, arquitetado em sussurros enquanto o lunático foi ao banheiro, era fugir com a câmera para vendê-la.
Tivemos uma certa dificuldade para separá-lo do aparelho, mas acabamos conseguindo. Dormimos algumas horas e antes de amanhecer já estávamos na estação rodoviária. Compramos passagens no primeiro horário para a cidade mais próxima e partimos, eufóricos. Só pensávamos em quanto dinheiro conseguiríamos com a venda. Será que seria suficiente para irmos até os Estados Unidos?
40 DIAS NO DESERTO
DIÁRIO DE BORDO
2 de abril de 1972
Estamos em Tumbes, na fronteira do Equador. Foi fácil pegar carona para chegar até aqui, e já estou adaptado aos meus novos companheiros de viagem. É interessante como às vezes mal se conhece alguém e parece que se está junto há anos. Pedro e Dedeco são tranqüilos, bem-humorados, seguros de si, enfrentam as dificuldades sem stress. Que diferença dos rapazes de Copacabana, sempre tensos, desconfiados, destemperados verbais. Não sei se não teria sido melhor termos continuado sem eles, em Salta, na Argentina. Naquela época nos virávamos bem, tínhamos um show ensaiado, éramos um grupo homogêno. Acabamos optando pela solução mais confortável – tínhamos passado alguns dias dormindo ao relento, e na última noite caiu uma chuva forte. Estávamos no meio do mato, à beira de um riacho, e tivemos que sair correndo. A possibilidade de viajar num ônibus equipado com camas e cozinha pareceu exclente naquele momento, mas logo começaram as complicações..
Pedro e Dedeco são duas pessoas totalmente diferentes um do outro. Pedro é poeta, introvertido, culto, formado em filosofia, enquanto Dedeco, fotógrafo e estudante de sociologia, tem uma enorme facilidade de comunicação, de abordar pessoas e resolver a questões do dia-a-dia. São amigos de infância e se entendem muito bem. Dedeco chama Pedro de Major. Até pensei que ele tinha sido do Exército, e perguntei isso a eles. Caíram na gargalhada. O cara fora excluído do serviço militar porque não fazia nada do que os superiores mandavam. Tem horror a trabalho, a esforço físico, a disciplina, a cumprir ordens. Temos conversado muito, e me parece que os dois estão gostando da minha companhia.
Alguns quilômetros antes de chegarmos a Tumbes a paisagem mudou completamente. De pé na caçamba da camionete em que viajávamos, vimos o verde nos envolver, depois de 45 dias no deserto. Começamos a dar gargalhadas, nos abraçamos e gritamos de felicidade. O verde, finalmente. Nascido e criado no Sul do Brasil, jamais pensei que um dia a visão de campos e florestas me comoveria tanto.
Estamos em Tumbes, na fronteira do Equador. Foi fácil pegar carona para chegar até aqui, e já estou adaptado aos meus novos companheiros de viagem. É interessante como às vezes mal se conhece alguém e parece que se está junto há anos. Pedro e Dedeco são tranqüilos, bem-humorados, seguros de si, enfrentam as dificuldades sem stress. Que diferença dos rapazes de Copacabana, sempre tensos, desconfiados, destemperados verbais. Não sei se não teria sido melhor termos continuado sem eles, em Salta, na Argentina. Naquela época nos virávamos bem, tínhamos um show ensaiado, éramos um grupo homogêno. Acabamos optando pela solução mais confortável – tínhamos passado alguns dias dormindo ao relento, e na última noite caiu uma chuva forte. Estávamos no meio do mato, à beira de um riacho, e tivemos que sair correndo. A possibilidade de viajar num ônibus equipado com camas e cozinha pareceu exclente naquele momento, mas logo começaram as complicações..
Pedro e Dedeco são duas pessoas totalmente diferentes um do outro. Pedro é poeta, introvertido, culto, formado em filosofia, enquanto Dedeco, fotógrafo e estudante de sociologia, tem uma enorme facilidade de comunicação, de abordar pessoas e resolver a questões do dia-a-dia. São amigos de infância e se entendem muito bem. Dedeco chama Pedro de Major. Até pensei que ele tinha sido do Exército, e perguntei isso a eles. Caíram na gargalhada. O cara fora excluído do serviço militar porque não fazia nada do que os superiores mandavam. Tem horror a trabalho, a esforço físico, a disciplina, a cumprir ordens. Temos conversado muito, e me parece que os dois estão gostando da minha companhia.
Alguns quilômetros antes de chegarmos a Tumbes a paisagem mudou completamente. De pé na caçamba da camionete em que viajávamos, vimos o verde nos envolver, depois de 45 dias no deserto. Começamos a dar gargalhadas, nos abraçamos e gritamos de felicidade. O verde, finalmente. Nascido e criado no Sul do Brasil, jamais pensei que um dia a visão de campos e florestas me comoveria tanto.
UMA NOITE NUMA CASCA DE NOZ
Atravessamos o golfo de Guayaquil num barco de madeira, parecido com aqueles que fazem o transporte de passageiros nos rios da Amazônia. Como não tínhamos redes (nem sabíamos que o barco não tinha acomodações, apenas os ganchos para redes), nos acomodamos no chão mesmo, na proa do barco. Anoitecia quando embarcamos. A viagem durou toda a noite, e ao chegarmos a Guayaquil, de manhã, estávamos exaustos e mareados.
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HELLO, GOOD BYE
Minha primeira impressão do Equador foi de que iríamos atravessar o país rapidamente. Completamente desconhecido de mim e da maioria dos brasileiros, em parte por não ter fronteira com o Brasil, ele é pequeno, pouco maior que o estado do Rio Grande do Sul. Achei Guaiaquil (maior cidade do país, hoje com quase 2 milhões de habitantes), onde passei o primeiro dia em solo equatoriano, uma cidade suja, feia, insegura, apesar de só ter conhecido a zona próxima ao porto, e todos os portos são semelhantes em sujeira, prostituição e gente mal-intencionada em busca de otários.
Depois de uma noite praticamente em claro, tudo que queríamos era uma cama dormir. Andamos de hoteleco em hoteleco, mas nosso dinheiro não dava para pagar a diária, nem mesmo naqueles com prostitutas na porta oferecendo seus serviços por meia dúzia de sucres (a moeda equatoriana, aprendemos logo, era o sucre). Estávamos quase conformados a passar a noite numa praça quando o Dedeco voltou de uma inspeção com um vasto sorriso no rosto: havia um, alí perto, à altura das nossas possibilidades. Pagamos adiantado na portaria sem conferir o que nos esperava. Não queríamos nada além de uma boa noite de sono.
Subimos as escadas atrás de uma velha senhora, que nos levou até o nosso “quarto”: um cubículo formado por divisórias de no máximo dois metros de altura, onde mal cabiam os três colchonetes onde nos acomodamos. Era um andar inteiro subdividido em cubículos, onde os hóspedes eram amontoados. Ainda era cedo quando chegamos – recém anoitecia – e o “hotel” ainda estava vazio e silencioso. Mas logo começaram a chegar os nossos vizinhos – casais falando alto, famílias com crianças chorando, grupos de rapazes. O local não demorou a lotar, e eram dezenas (ou centenas) de pessoas misturando suas vozes, odores e, pouco ao pouco, roncos.
Exaustos, acabamos dormindo. Foi uma boa noite de sono.
Depois de uma noite praticamente em claro, tudo que queríamos era uma cama dormir. Andamos de hoteleco em hoteleco, mas nosso dinheiro não dava para pagar a diária, nem mesmo naqueles com prostitutas na porta oferecendo seus serviços por meia dúzia de sucres (a moeda equatoriana, aprendemos logo, era o sucre). Estávamos quase conformados a passar a noite numa praça quando o Dedeco voltou de uma inspeção com um vasto sorriso no rosto: havia um, alí perto, à altura das nossas possibilidades. Pagamos adiantado na portaria sem conferir o que nos esperava. Não queríamos nada além de uma boa noite de sono.
Subimos as escadas atrás de uma velha senhora, que nos levou até o nosso “quarto”: um cubículo formado por divisórias de no máximo dois metros de altura, onde mal cabiam os três colchonetes onde nos acomodamos. Era um andar inteiro subdividido em cubículos, onde os hóspedes eram amontoados. Ainda era cedo quando chegamos – recém anoitecia – e o “hotel” ainda estava vazio e silencioso. Mas logo começaram a chegar os nossos vizinhos – casais falando alto, famílias com crianças chorando, grupos de rapazes. O local não demorou a lotar, e eram dezenas (ou centenas) de pessoas misturando suas vozes, odores e, pouco ao pouco, roncos.
Exaustos, acabamos dormindo. Foi uma boa noite de sono.
DE VOLTA À CORDILHEIRA
A melhor carona para viagens curtas é na caçamba de uma camionete – desde que não esteja chovendo, e a estrada seja asfaltada. A paisagem está à toda volta, e não é preciso(nem possível) falar com os motoristas, muitas vezes chatos e até inconvenientes. É só embarcar, desembarcar, agradecer e tchau. E dá até para fumar um baseado - Dedeco desenvolveu a técnica de fechar cigarros perfeitos apesar do vento e dos solavancos...
Também viajamos em carrocerias de caminhões. A melhor delas foi sobre uma carga de folhas. Viajamos deitados, olhando para as nuvens, depois de fumar um enorme charuto.
A bordo de camionetes subimos novamente a cordilheira dos Andes, de Guaiaquil até Quito, e nos meses seguintes nos deslocamos por este país que nos conquistou pela beleza de seus cenários – litoral, montanhas, vulcões e selva – e pela hospitalidade de seu povo.
De carona em carona, o Equador foi se revelando. No início, as enormes plantações de banana, um dos principais produtos de exportação do país. Depois, as encostas das montanhas, cultivadas em quadrados coloridos, e, sempre subindo, os vulcões, com picos coberto de neve. Conversávamos pouco, extasiados com a paisagem. Ao meio dia já estávamos em Santo Domingo de los Colorados, perto da capital – não ficamos parados mais do que alguns minutos para alguém aceitar nosso pedido de carona – quando a camionete parou e o casal que nos levava disse que faria uma pausa para almoçar e nos convidou a entrar com eles no restaurante. Fazia muito tempo que não tínhamos um almoço decente, mas agradecemos.
- Vamos ficar por aqui mesmo, esperando – eu disse, com evidente cara de fome.
O casal insistiu, deixando claro que pagaria a conta. Aceitamos um tanto desconfiados, mas o almoço foi saboroso e agradável. Conversamos bastante sobre nós e nossos países, e depois seguimos viagem, felizes. Foi a primeira de tantas demonstrações de cordialidade dos equatorianos. Chegamos a Quito relaxados e confiantes. Já não tínhamos pressa em deixar o país.
Também viajamos em carrocerias de caminhões. A melhor delas foi sobre uma carga de folhas. Viajamos deitados, olhando para as nuvens, depois de fumar um enorme charuto.
A bordo de camionetes subimos novamente a cordilheira dos Andes, de Guaiaquil até Quito, e nos meses seguintes nos deslocamos por este país que nos conquistou pela beleza de seus cenários – litoral, montanhas, vulcões e selva – e pela hospitalidade de seu povo.
De carona em carona, o Equador foi se revelando. No início, as enormes plantações de banana, um dos principais produtos de exportação do país. Depois, as encostas das montanhas, cultivadas em quadrados coloridos, e, sempre subindo, os vulcões, com picos coberto de neve. Conversávamos pouco, extasiados com a paisagem. Ao meio dia já estávamos em Santo Domingo de los Colorados, perto da capital – não ficamos parados mais do que alguns minutos para alguém aceitar nosso pedido de carona – quando a camionete parou e o casal que nos levava disse que faria uma pausa para almoçar e nos convidou a entrar com eles no restaurante. Fazia muito tempo que não tínhamos um almoço decente, mas agradecemos.
- Vamos ficar por aqui mesmo, esperando – eu disse, com evidente cara de fome.
O casal insistiu, deixando claro que pagaria a conta. Aceitamos um tanto desconfiados, mas o almoço foi saboroso e agradável. Conversamos bastante sobre nós e nossos países, e depois seguimos viagem, felizes. Foi a primeira de tantas demonstrações de cordialidade dos equatorianos. Chegamos a Quito relaxados e confiantes. Já não tínhamos pressa em deixar o país.
QUITO, EQUADOR
A praça da Independência (foto), com o Palácio do Governo ao fundo.
Quito está a 2850 metros acima do nível do mar. Sua população é de 1,4 milhão de habitantes. Fica 22 km ao sul da linha do Equador. Devido à altitude e localização da cidade, na encosta do vulcão Pichincha (ainda em atividade) o clima é
Razoavelmente constante, com uma temperatura máxima ao redor dos 21º C em qualquer época do ano.
CARREIRA SOLO
"O dinheiro acabou". A frase, dita pelo Dedeco, teve o efeito de uma ducha fria e me trouxe de volta à realidade, depois de alguns dias fora do ar, me recompondo dos efeitos dos excessos de drogas em Lima. Meus novos amigos haviam me poupado de suas preocupações com coisas banais como arranjar dinheiro para comer e pagar o hotel, mas não havia mais como esconder que estávamos a zero.
O hotel em que nos hospedamos, na cidade histórica, um prédio antigo de quartos enormes, dava vista para o conjunto arquitetônico dos séculos 17, 18 e 19, razoavelmente conservado e agora preservado pela Unesco. A diária era barata, e o funcionário não exigiu pagamento adiantado. Decidimos sair para “manguear” - pedir dinheiro na rua – e conhecer a cidade. Conseguimos o suficiente para comprar pão, bananas e um pacote de leite (foi a primeira fez que vi leite em pacotes tetrapak. No Brasil só havia leite em saquinhos ou litros de vidro). Foi a nossa janta, e no dia seguinte o café da manhã. Repetimos o cardápio muitas outras vezes. Além de custar pouco, é um bom alimento, e contrabalançava aquelas comidas gordurosas que comíamos nas bancas de rua.
Como não podíamos viver só a pão, banana e leite, e as diárias do hotel estavam correndo, comecei a minha carreira solo. Cantava nas ruas, e no horário do almoço ia de restaurante em restaurante. Falávamos com o gerente, eu dava uma pequena demonstração da minha música, e se ele aprovasse (o que quase sempre acontecia) o show começava, entre as mesas. À noite, percorríamos os bares. Nos primeiros dias eu misturava estilos, cantava música brasileira e alguns boleros em espanhol que conhecia, até sentir quais as músicas que mais agradavam os hermanos equatorianos. Nas ruas a favorita era Jesus Cristo, de Roberto Carlos. Devemos a Roberto muitos almoços e jantares – o povo ficava fascinado, vendo aquele loiro cabeludo cantando "Jesus Cristo, eu estou aqui" em português (fiz também uma versão em espanhol). Nos restaurantes e bares, os clientes preferiam sambas e algumas músicas de bossa nova conhecidas como Garota de Ipanema, Felicidade (“Tristeza não tem fim, felicidade sim”) e Manhã de Carnaval, popularizada no filme Orfeu do Carnaval.
Quando havia clima, improvisávamos uma sessão de macumba. Pedro e Dedeco me davam uma força na percussão (eu ainda tinha o atabaque, vendido depois) e na coreografia, e eu cantava os pontos que havia aprendido com Régis (o carioca). No fim da jornada, conseguíamos o suficiente para pagar o hotel, comer e passear pela cidade. Dava também para pequenos luxos, como comprar cigarros americanos e tomar banho a cada três ou quatro dias nos banheiros públicos. Devido às temperaturas baixas, os chuveiros elétricos, baratos e fáceis de instalar, não aquecem o suficiente. Só as casas de classe média para cima tinham aquecedores a gás ou à lenha. O povão tomava banho em banheiros onde, além de chuveiros quentes privativos, eram fornecidos sabonetes e toalhas. Um luxo, por algumas moedas.
Foi bem difícil negociar a câmera filmadora furtada em Lima. Começamos pedindo US$ 3 mil (o que achávamos que ela valia, pelos preços que havíamos visto nas lojas), mas como éramos estrangeiros e não tínhamos nota de compra nem qualquer documento de ingresso do equipamento no país, acabamos torrando-a por US$ 300 para um funcionário do Banco Central. Ainda eram um bom dinheiro, mas acabou o nosso sonho de comprar passagens de avião ou de navio. Aproveitamos para visitar o Museu do Ouro, imensa coleção de jóias da época incaica e pré-incaica localizada no prédio do banco. As mais valiosas ficam dentro de um enorme cofre, aberto por alguns minutos para que os turistas as vejam, faiscando sob luzes feéricas. É impressionante a habilidade dos ourives incas no manuseio de ouro, prata e platina.
Na temporada que passamos em Quito nossa principal atividade, além das apresentações artístico-culturais, era uma forma de ir para os Estados Unidos, a Europa ou os países socialistas. Peregrinamos pelas embaixadas em busca de visto, mas nenhum país se interessou em receber jovens sem dinheiro, profissão, endereço fixo ou objetivo definido na vida. Acabamos nos conformando em seguir viagem por terra, de carona em carona, de pueblo em pueblo. Iríamos até a Cartagena, porto caribenho da Colômbia, para tentar um emprego num barco que fosse rumo ao norte.
Mas o destino tinha outros planos para nós ...
O hotel em que nos hospedamos, na cidade histórica, um prédio antigo de quartos enormes, dava vista para o conjunto arquitetônico dos séculos 17, 18 e 19, razoavelmente conservado e agora preservado pela Unesco. A diária era barata, e o funcionário não exigiu pagamento adiantado. Decidimos sair para “manguear” - pedir dinheiro na rua – e conhecer a cidade. Conseguimos o suficiente para comprar pão, bananas e um pacote de leite (foi a primeira fez que vi leite em pacotes tetrapak. No Brasil só havia leite em saquinhos ou litros de vidro). Foi a nossa janta, e no dia seguinte o café da manhã. Repetimos o cardápio muitas outras vezes. Além de custar pouco, é um bom alimento, e contrabalançava aquelas comidas gordurosas que comíamos nas bancas de rua.
Como não podíamos viver só a pão, banana e leite, e as diárias do hotel estavam correndo, comecei a minha carreira solo. Cantava nas ruas, e no horário do almoço ia de restaurante em restaurante. Falávamos com o gerente, eu dava uma pequena demonstração da minha música, e se ele aprovasse (o que quase sempre acontecia) o show começava, entre as mesas. À noite, percorríamos os bares. Nos primeiros dias eu misturava estilos, cantava música brasileira e alguns boleros em espanhol que conhecia, até sentir quais as músicas que mais agradavam os hermanos equatorianos. Nas ruas a favorita era Jesus Cristo, de Roberto Carlos. Devemos a Roberto muitos almoços e jantares – o povo ficava fascinado, vendo aquele loiro cabeludo cantando "Jesus Cristo, eu estou aqui" em português (fiz também uma versão em espanhol). Nos restaurantes e bares, os clientes preferiam sambas e algumas músicas de bossa nova conhecidas como Garota de Ipanema, Felicidade (“Tristeza não tem fim, felicidade sim”) e Manhã de Carnaval, popularizada no filme Orfeu do Carnaval.
Quando havia clima, improvisávamos uma sessão de macumba. Pedro e Dedeco me davam uma força na percussão (eu ainda tinha o atabaque, vendido depois) e na coreografia, e eu cantava os pontos que havia aprendido com Régis (o carioca). No fim da jornada, conseguíamos o suficiente para pagar o hotel, comer e passear pela cidade. Dava também para pequenos luxos, como comprar cigarros americanos e tomar banho a cada três ou quatro dias nos banheiros públicos. Devido às temperaturas baixas, os chuveiros elétricos, baratos e fáceis de instalar, não aquecem o suficiente. Só as casas de classe média para cima tinham aquecedores a gás ou à lenha. O povão tomava banho em banheiros onde, além de chuveiros quentes privativos, eram fornecidos sabonetes e toalhas. Um luxo, por algumas moedas.
Foi bem difícil negociar a câmera filmadora furtada em Lima. Começamos pedindo US$ 3 mil (o que achávamos que ela valia, pelos preços que havíamos visto nas lojas), mas como éramos estrangeiros e não tínhamos nota de compra nem qualquer documento de ingresso do equipamento no país, acabamos torrando-a por US$ 300 para um funcionário do Banco Central. Ainda eram um bom dinheiro, mas acabou o nosso sonho de comprar passagens de avião ou de navio. Aproveitamos para visitar o Museu do Ouro, imensa coleção de jóias da época incaica e pré-incaica localizada no prédio do banco. As mais valiosas ficam dentro de um enorme cofre, aberto por alguns minutos para que os turistas as vejam, faiscando sob luzes feéricas. É impressionante a habilidade dos ourives incas no manuseio de ouro, prata e platina.
Na temporada que passamos em Quito nossa principal atividade, além das apresentações artístico-culturais, era uma forma de ir para os Estados Unidos, a Europa ou os países socialistas. Peregrinamos pelas embaixadas em busca de visto, mas nenhum país se interessou em receber jovens sem dinheiro, profissão, endereço fixo ou objetivo definido na vida. Acabamos nos conformando em seguir viagem por terra, de carona em carona, de pueblo em pueblo. Iríamos até a Cartagena, porto caribenho da Colômbia, para tentar um emprego num barco que fosse rumo ao norte.
Mas o destino tinha outros planos para nós ...
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