domingo, 12 de dezembro de 2010

CARREIRA SOLO

"O dinheiro acabou". A frase, dita pelo Dedeco, teve o efeito de uma ducha fria e me trouxe de volta à realidade, depois de alguns dias fora do ar, me recompondo dos efeitos dos excessos de drogas em Lima. Meus novos amigos haviam me poupado de suas preocupações com coisas banais como arranjar dinheiro para comer e pagar o hotel, mas não havia mais como esconder que estávamos a zero.

O hotel em que nos hospedamos, na cidade histórica, um prédio antigo de quartos enormes, dava vista para o conjunto arquitetônico dos séculos 17, 18 e 19, razoavelmente conservado e agora preservado pela Unesco. A diária era barata, e o funcionário não exigiu pagamento adiantado. Decidimos sair para “manguear” - pedir dinheiro na rua – e conhecer a cidade. Conseguimos o suficiente para comprar pão, bananas e um pacote de leite (foi a primeira fez que vi leite em pacotes tetrapak. No Brasil só havia leite em saquinhos ou litros de vidro). Foi a nossa janta, e no dia seguinte o café da manhã. Repetimos o cardápio muitas outras vezes. Além de custar pouco, é um bom alimento, e contrabalançava aquelas comidas gordurosas que comíamos nas bancas de rua.

Como não podíamos viver só a pão, banana e leite, e as diárias do hotel estavam correndo, comecei a minha carreira solo. Cantava nas ruas, e no horário do almoço ia de restaurante em restaurante. Falávamos com o gerente, eu dava uma pequena demonstração da minha música, e se ele aprovasse (o que quase sempre acontecia) o show começava, entre as mesas. À noite, percorríamos os bares. Nos primeiros dias eu misturava estilos, cantava música brasileira e alguns boleros em espanhol que conhecia, até sentir quais as músicas que mais agradavam os hermanos equatorianos. Nas ruas a favorita era Jesus Cristo, de Roberto Carlos. Devemos a Roberto muitos almoços e jantares – o povo ficava fascinado, vendo aquele loiro cabeludo cantando "Jesus Cristo, eu estou aqui" em português (fiz também uma versão em espanhol). Nos restaurantes e bares, os clientes preferiam sambas e algumas músicas de bossa nova conhecidas como Garota de Ipanema, Felicidade (“Tristeza não tem fim, felicidade sim”) e Manhã de Carnaval, popularizada no filme Orfeu do Carnaval.

Quando havia clima, improvisávamos uma sessão de macumba. Pedro e Dedeco me davam uma força na percussão (eu ainda tinha o atabaque, vendido depois) e na coreografia, e eu cantava os pontos que havia aprendido com Régis (o carioca). No fim da jornada, conseguíamos o suficiente para pagar o hotel, comer e passear pela cidade. Dava também para pequenos luxos, como comprar cigarros americanos e tomar banho a cada três ou quatro dias nos banheiros públicos. Devido às temperaturas baixas, os chuveiros elétricos, baratos e fáceis de instalar, não aquecem o suficiente. Só as casas de classe média para cima tinham aquecedores a gás ou à lenha. O povão tomava banho em banheiros onde, além de chuveiros quentes privativos, eram fornecidos sabonetes e toalhas. Um luxo, por algumas moedas.

Foi bem difícil negociar a câmera filmadora furtada em Lima. Começamos pedindo US$ 3 mil (o que achávamos que ela valia, pelos preços que havíamos visto nas lojas), mas como éramos estrangeiros e não tínhamos nota de compra nem qualquer documento de ingresso do equipamento no país, acabamos torrando-a por US$ 300 para um funcionário do Banco Central. Ainda eram um bom dinheiro, mas acabou o nosso sonho de comprar passagens de avião ou de navio. Aproveitamos para visitar o Museu do Ouro, imensa coleção de jóias da época incaica e pré-incaica localizada no prédio do banco. As mais valiosas ficam dentro de um enorme cofre, aberto por alguns minutos para que os turistas as vejam, faiscando sob luzes feéricas. É impressionante a habilidade dos ourives incas no manuseio de ouro, prata e platina.


Na temporada que passamos em Quito nossa principal atividade, além das apresentações artístico-culturais, era uma forma de ir para os Estados Unidos, a Europa ou os países socialistas. Peregrinamos pelas embaixadas em busca de visto, mas nenhum país se interessou em receber jovens sem dinheiro, profissão, endereço fixo ou objetivo definido na vida. Acabamos nos conformando em seguir viagem por terra, de carona em carona, de pueblo em pueblo. Iríamos até a Cartagena, porto caribenho da Colômbia, para tentar um emprego num barco que fosse rumo ao norte.

Mas o destino tinha outros planos para nós ...

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