sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

DIÁRIO DE BORDO

Arequipa, Peru, 23 de fevereiro de 1972


Hoje fazem dois meses que estou na estrada. Sentado num banco na praça, vendo o a luz do por-de-sol tingir de alaranjado o pico nevado do Misti, o vulcão que emoldura a paisagem da cidade, fico pensando nestes sessenta dias de viagens – sim, no plural - e o que teria acontecido se eu tivesse ficado em Porto Alegre em vez de cruzar o rio Uruguai. Até o dia do embarque eu levava a minha vidinha boa de estudante de jornalismo da Ufrgs. Tirava a faculdade de letra, com o mínimo esforço e o máximo prazer (enquanto havia bar, meu violão ficava lá, embaixo do balcão).
Ganhava dois salários mínimos trabalhando na Secretaria da Justiça à tarde – redigia memorandos, ofícios, guias de soltura de presos –, e mais um como estagiário, à noite, da rádio da Universidade, onde fui selecionado num concurso para locutor. Na madrugada, festas e namoro. Ah, eu também dormia algumas horas por noite, para na manhã seguinte estar de novo na faculdade. O quinto semestre vai começar daqui a alguns dias para a minha turma.
Que mudança! 

Em vez de um Natal com pinheirinho, presépio e presentes, um vagão de trem no meio do deserto do Chaco, lotado de pessoas bêbadas, inclusive o cobrador.  Na virada de ano, em Salta, o primeiro contato com as zambas, chacareras e o rico folclore argentino, ao ritmo do bombo legüero. E muito, muito vinho tinto. Na Bolívia as montanhas, as llamas, os índios dos povoados a nos olharem como extra-terrestres. El Condor Pasa tocado por queñas e charangos num cabaré de Oruro. As primeiras apresentações para grandes públicos. As dificuldades de convivência e de sobrevivência, o carinho e a desconfiança. As drogas com seus os delírios, a euforia, a paranóia, o medo e a fascinação frente ao desconhecido. As decisões difíceis, as rupturas.
A turma da faculdade ficou lá no altiplano. Eu já não sei o que virá daqui para a frente.
Cada dia é uma aventura, uma descoberta, um desafio.



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