Acordei ao amanhecer, com um ruído que vinha da rua. Parecia que estavam raspando o chão. Abri a janela do nosso ônibus-casa, estacionado na praça do Montículo, uma colina de La Paz, e vi um grupo de índias varrendo vigorosamente as calçadas e o meio-fio com enormes vassouras feitas com arbustos. Eu dormia dentro do meu saco de dormir, na parte de trás do ônibus, em cima de um balcão usado como depósito de materiais. Na parte da frente havia dois conjuntos de beliches. Numa das camas de cima, o Dodo também se acordava. Estávamos sós. Ele olhou para mim e começou a mover as pernas para descer. Comecei a rir: as pernas dele pareciam flexíveis, como a do Máskara. Esticaram até o chão, enquanto a cabeça e o resto do corpo se mantinham sobre a cama.
Ele olhou para mim e também começou a rir - também devia estar me achando diferente. Começamos a conversar e nos lembramos que ainda estava escuro quando o Régis nos acordou, disse para abrirmos a boca e colocou dentro um comprimido avisando que era ácido - um Califórnia Sunshine. Vestimos roupas confortáveis e saímos.
A primeira mudança que senti foi no olfato. Ainda na praça, cercada de eucaliptos, parei para respirar fundo e sentir o perfume das árvores. Engraçado, estávamos alí há mais de uma semana e eu nunca havia reparado que elas exalavam um perfume tão delicioso. Ficamos ali, mudos, olhando a paisagem. Os diferentes tons de verde das montanhas que cercam a cidade se tornaram mais vivos, contrastando com a cor de barro das casas.
Saímos a caminhar, e já no subúrbio entramos num boteco escuro e pedimos picolés. Eram daqueles de groselha, feitos em casa, e quando coloquei na boca, senti o líquido gelado de sabor metálico molhar a língua e descer pela garganta. Enquanto analisava o que estava acontecendo, senti os olhares de alguns índios cravados em nós. Estavam sentados em mesas no fundo do bar bebendo cerveja, e devem ter nos achado seres de outro mundo. Começaram a rir, começamos a rir com eles, e o riso se tornou incontrolável para todos. Pagamos os picolés e saímos, dando gargalhadas e ouvindo as gargalhadas deles.
Eu imagino La Paz como uma imensa metade de uma casca de ovo cortada longitudinalmente. A cidade foi edificada na sua parte mais baixa, e é cercada de paredões que sobem até o altiplano, a quatro mil metros de altura. Subimos pelas ruelas de um bairro miserável de pequenas casas de barro encravadas na montanha até chegar à parte mais alta, desabitada, onde a chuva e o vento esculpiram o que me pareceram bustos humanos na terra vermelha. Ficamos junto a eles, olhando a cidade lá de cima. Para nós, aquelas figuras eram velhos caciques, observando, século após século, a decadência de seu povo, submetido primeiro aos conquistadores espanhóis e depois às grandes companhias mineradoras que reduziram quase toda a população indígena à miséria. Antes de começarmos a descida me despedi deles desejando, emocionado, que um dia a Bolívia superasse a submissão aos exploradores estrangeiros e recuperasse o seu orgulho e o direito a usufruir de suas riquezas.
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